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“El busca vida”

Meu pai, José Moreno Rueda, falecido em 2007, sonhava realizar duas coisas ao  se aposentar: construir uma casinha em um terreno atrás do Sesc de Bertioga e rever sua Espanha, de onde saira menino. Em 1996, ele vendeu o terreno e, com a grana, fomos juntos visitar Madri e Andaluzia.

“Não quero me emocionar, senão eu tenho um troço”, ele me disse quando tomamos o avião para uma longa e mágica jornada. Antes da viagem, visitamos a antiga “Hospedaria de Immigração”, no Brás, em São Paulo, hoje museu, onde um livro registra que ele dera entrada ali 71 anos antes, mais precisamente em 3 de dezembro de 1925. Tinha 12 anos de idade e acompanhava vovô José, vovó Maria e os irmãos (mais novos) Miguel, Antônio e Antônia.  (Aqui nasceria a irmã  caçula, Josefa).

Saíram de Alhaurin El Grande, um pueblo andaluz onde já se nasce com apelido. Como ali não há colocação suficiente para todos, seus habitantes são conhecidos como el busca vida, por terem que trabalhar em cidades vizinhas. Meu avô ousou ir mais longe, comerciar frutas na África. E caiu na armadilha de marroquinos inimigos da Espanha.

Depois de ter sido dado por morto, ele reapareceu em Alhaurin aos trapos. Pouco contou do que se passou, colocando toda sua energia nos tramites para embarcar a família, semanas depois, no vapor Córdoba. Queria livrar os filhos de sofrimento igual. Parecia intuir o estouro da Guerra Civil Espanhola.

Nenhum deles voltou a rever a cidade, exceto meu pai. Por coincidência, na  semana em que chegamos estava de volta à matriz a patrona Virgem de Gracia, depois de vários anos de reforma da igreja. Ouvimos uma pitoresca história sobre o paradeiro da santa durante as obras. De tempos em tempos, a imagem era hospedada numa das casas do pueblo. Calhou que quando a Virgem estava na casa de um casal de irmãos, a mulher enferma morreu. Foi difícil convencer o irmão deixar a patrona sair, ele a queria como substituta da companhia perdida. E isto acrescentou mistério ao encanto da procissão do retorno.

Encontramos parentes do lado dos Morenos, de meu avô,  e do lado dos Ruedas, de minha avó. Com eles aprendi a fazer paella, cuja receita aos poucos fui mudando e hoje a denomino alhaurina, por ser única.  Visitarmos um moinho de trigo em funcionamento há cinco séculos, saborearmos a rica comida da marisqueria Casa Paco, vimos a Fuente Lucena e provamos os típicos bollos de aceite.

Fomos  fotografados junto ao Arco del Cobertizo, do século XII, marca dos sete séculos de presença árabe na região, quando mudaram o nome do lugar do romano  Lauro Nova para Alhaurin, que significaria “Jardim de Alá”.

No cartório, copiamos a página com a acta de nacimiento dele. O momento mais emocionante foi a visita à casa onde ele nasceu, com mais de 200 anos de construção. Pequenina, paredes grossas, piso ainda de pedras do tamanho de um punho  fechado, como ele sempre lembrava. Punho de criança, pois eram pedras pequenas. (Em 2010, voltei a ela, com meu filho Guilherme, e a encontrei abandonada, funcionando como depósito de uma oficina de motos).

Inesquecível o sorriso e a leveza de caminhar de meu pai durante um passeio pelas ruas do casco viejo da cidade, logo após a leitura de uma reportagem do jornal “Sur” sobre seu retorno, tido como um feito histórico. Um sorriso que lembrava uma foto sua com 12 anos, prestes não apenas a buscar, mas a semear a vida – lá e cá.

Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 30 de março de 2011)