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Posts Tagged ‘Mogi das Cruzes’

Memórias do casarão da Coronel

O casarão da Coronel Souza Franco, em Mogi das Cruzes,  sempre despertou a curiosidade dos que circulam pela rua. Mesmo tendo abrigado por muitos anos uma pensão, são relativamente poucos os mogianos que a conheceram por dentro. Eu fui um deles, se bem que guardo vaga lembrança disso, pois era um pirralho de dois, três anos. Minha mãe Geralda, contudo, tinha muitas recordações do casarão, exaustivamente repetidas nas conversas que eu e meus irmãos Valter Luis e Lúcia Helena tivemos com ela no ano passado, antes de seu falecimento.

O Valter, por sinal, nasceu no casarão em março de 1952. Papai José comprou a pensão no final dos anos 40, com o dinheiro da venda de um bar no Brás. Meu irmão José Carlos era de colo. Depois, eles se mudaram ao repassarem o negócio para meus avós maternos, Cecília e Júlio. Não passou muito tempo, voltaram, agora comigo, recém nascido. Ficamos, provavelmente, até 1953, quando meus avós venderam a pensão para dona Lucinda.  

A pensão servia almoço todos os dias, de segunda a sexta. Era, por assim dizer, o refeitório do SENAI, recebendo todos os dias  40 funcionários. Para atender a um pedido deles, nas quartas, o prato do dia era espinafre, comprava-se 20 maços para a turma. Outro grupo assíduo eram as professoras do Colégio Normal, que ficava ali pertinho. E havia ainda o  dr. Mello Freire do cartório que saudava com rima a visita de Eny , prima de minha mãe: “Menina bonita de Cachoeira Paulista”.

Por dia saiam umas 15 marmitas. Quem entregava era o filho do “Geraldo sapateiro”, garoto bonzinho mas que vez ou outra tirava uma lasquinha dos bifes dos clientes.  

O estabelecimento tinha também pensionistas residentes. Havia  o professor  Sinibaldi do SENAI, o João do Banco São Paulo, o Robertinho da gráfica e  o Arnaldo que se casou com a Pérola.    

O casarão, erguido com tijolos de barro, data dos anos 20. Desde sempre chamou a atenção com suas colunas neoclássicas, a escadaria de mármore branco (quanto sapólio para limpar !) e os recuos laterais e de frente. A porta tinha acabamento superior com “vidros de igreja”, como Eny descreve  os vidros coloridos. Os janelões tinham vidros grossos, daqueles que se passava jornal para brilhar. Seriam franceses.

Entrando, havia um quarto para cada lado, separados por um corredorzinho de labrilho hidráulico. Depois vinha a sala grande com paredes decoradas.  Ela tinha um piso de largas e grossas tábuas de madeira. De tanto se esforçar para, ajoelhada, lustrar aquele chão com cera de pasta,  minha mãe certa vez adoeceu.

Cruzando a sala, um corredor de piso de madeira levava a mais quatro quartos. Ai vinha a sala de refeições dos pensionistas, depois a copa onde a família comia e a cozinha de piso cimentado. “O fogão era uma beleza, com oito ou dez bocas, de tijolo, com uma chapa de ferro bonita”, contava mamãe. Mais aos fundos ficavam o único banheiro, uma dispensa e um quartinho. No quintal, um ranchinho.

Li no jornal que a construção, coberta por telhas de barro, tem 195 metros quadrados e o terreno 511. Já foi maior. Na lateral, onde hoje tem a sede do PR (antiga casa do prefeito Valdemar), havia um pomar com vistosas árvores. Ele era protegido da rua por um muro com grades de ferro fundido, “inglesas”, assim como a frente da casa, com belas palmeiras e um jardim de hortências. Todo espaço externo era o reino do Ceará, nosso cachorro.  

O nascimento de meu irmão Valter mexeu com a rotina do lugar. O parto, foi demorado. Assustou Zé Carlos, meu irmão mais velho, que chorava muito. “Leva essa criança para fora !”, gritou a certa altura, para meu pai,   a “madrinha” Cecília.

Na hora, os pensionistas escutavam pela Rádio Nacional a radionovela “O Direito de Nascer”, fenômeno de audiência que inspirou uma novela da TV Tupi. Quando eles ouviram o choro do recém chegado, aplaudiram bravamente.   

Em 2010, antes da Prefeitura desapropriar o casarão, minha mãe sonhava voltar a “entrar nela” antes que a derrubassem. O imóvel já estava em péssimo estado de conservação. Hoje, o casarão luta pelo direito de sobreviver.

                                                                                                      Texto de   Júlio Moreno 

Fotos do casarão hoje, na sequência, de Clarissa Ornellas, Andréia Tuca Pinheiro e Lúcia Helena de Oliveira Moreno.

A foto histórica é do álbum da familia. Foi tirada no jardim do casarão, em 1952, mostrando meu pai, José, comigo (à esquerda na foto) e meu irmão Valter Luis no colo. Em pé, na frente, meu irmão José Carlos.

(Crônica publicada em “O Diário de Mogi” de 18 de março de 2012)

A lição do Tote

novembro 5, 2011 1 comentário

Há 85 semanas escrevo nesse cantinho de página do Caderno A. Foram cerca de 300 mil caracteres digitados, para comporem palavras que teceram artigos, entrevistas, pequenos contos e até crônicas. Chegou o momento de dar uma pausa.

Novas obrigações profissionais na Fundação Padre Anchieta, onde trabalho, me impedem acumular atividades. Faltam-me condições para escrever, toda semana, uma coluna com um mínimo de qualidade. Produzir sem prazer seria um desrespeito ao leitor que me prestigia, ao jornal que me confiou esse espaço e à minha carreira iniciada aqui em 1966. Eu tinha 16 anos.

Este é um tema bem oportuno para hoje.  Minha opção pelo jornalismo começara a se formar alguns anos antes, ao acompanhar a leitura dos jornais do dia por um grupo de respeitáveis senhores que se reunia toda manhã na porta da camisaria de meu pai, a Casa Moreno, na rua dr. Deodato. As conversas deles sobre o noticiário me fascinavam.  

Além disso, uma vez por semana, meu pai , José Moreno Rueda, ia a São Paulo para fazer compras e voltava de lá com “A Gazeta”, hoje inexistente, mas na época um jornal muito conceituado. Era vespertino, bastante inovador, sempre com notícias fresquinhas. Vale lembrar que o telejornalismo era incipiente e os rádinhos de pilha recentes.  

Com um mimeógrafo de madeira que eu mesmo construi, copiando modelo de uma revista juvenil, produzi alguns jornaiszinhos domésticos. Eu digitava o texto num estencil, que era afixado numa tela de pano onde espalhava tinta preta com um rolinho. As mãos ficavam borradas, mas a impressão no papel branco era limpa.  Lamento ter jogado o mimeógrafo fora e não ter guardado nenhum exemplar.  

No curso ginasial do Washington Luis, atuando no Clube de Ciências criado pelo professor Adolfo Martini, conheci o médico e  jornalista José Reis, da Folha de S.Paulo, um pioneiro da divulgação científica no Brasil. Incentivado por ele, o Clube promoveu duas feiras de ciências no antigo ginásio do União F.C. no Mogilar. E eu, um tablóide diário, com a cobertura dos eventos. A capa, impressa por cortesia numa gráfica, trazia os anúncios dos patrocinadores. O miolo tinha as informações que eu mesmo reportava, redigia e imprimia, agora utilizando um mimeógrafo profissional, emprestado gentilmente pela Gioielli.

Na época, um dos jornalistas mais conhecidos de O Diário era o Moura Santos. Cliente da camisaria de meu pai, foi ele quem falou a meu respeito para o Tote. E eis que em junho de 1966, eu fui chamado para cobrir duas semanas de férias do então único repórter do jornal, um tal de Chico Ornellas.

Fiz pouca coisa, mas aprendi muito. Certo dia, sem saber direito sobre o que escrever, Tote me disse que bastava olhar pela janela do prédio do jornal (na época, na Barão de Jaceguai).  Eu olhei e não vi nada fora do comum. Ele, então, me apontou os postes com as fiações caindo, tema para uma boa reportagem. Ou seja, o jornalista deve ter visão treinada para ver o que é diferente naquilo que para os outros passa desapercebido.

Agradeço a todos, mas não me despeço. Sempre que possível, voltarei a escrever em O Diário, valendo-se do que o Tote costuma dizer aos colaboradores do jornal: “A casa é sua. Disponha”. Levo essas palavras na mente. E aproveito para felicitá-lo pelos 80 anos que completa hoje, o que o leitor talvez não saiba. (Viu, Tote, como eu aprendi direitinho a lição ?) .

                                                                               Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 18 de outubro de 2011).

Uma visão aberta da cultura

Merecem elogios as declarações iniciais do novo presidente do COMPHAP (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural, Artístico e Paisagístico) de Mogi, João Francisco Chavedar. Segundo o arquiteto,  a partir de agora o Conselho não irá restringir sua atuação à preservação dos prédios históricos, estendendo-se também às festas religiosas, obras de arte e outras  manifestações culturais que compõem a memória mogiana.

Essa visão está rigorosamente alinhada com a proposta pela Plataforma Cidades Sustentáveis, que defende o desenvolvimento de políticas culturais que “respeitem e valorizem a diversidade cultural, o pluralismo e a defesa do patrimônio natural, construído e imaterial, ao mesmo tempo em que promovam a transmissão das heranças naturais, culturais e artísticas”. Da mesma forma, a anunciada criação de câmaras temáticas compostas por membros da sociedade para ajudar o Conselho no cumprimento de seus objetivos, encaixa-se como uma luva na recomendação da Plataforma quanto ao incentivo a “uma visão aberta de cultura”, baseada no diálogo democrático entre comunidade, profissionais da área cultural e gestores públicos.

A Plataforma Cidades Sustentáveis é uma espécie de carta de recomendações proposta pela Rede Social Brasileira por Cidades Justas e Sustentáveis e pela Rede Nossa São Paulo para nortear os debates em torno da escolha das novas autoridades municipais do País em 2012. Sustentabilidade não é apenas conciliar as necessidades do homem com a natureza, sem que ela seja explorada à exaustão, diz o documento. Envolve também o renascimento do humanismo e, nesse aspecto, a cultura é fundamental.  

Quanto mais expressar o desejo da comunidade, mais fácil será para o Conselho obter não apenas ajuda do poder público, mas também da iniciativa privada. Outro segredo, segundo a Plataforma, é “estabelecer acesso gratuito ou a preços simbólicos nos equipamentos e espaços culturais públicos”.

Prover a todos, especialmente crianças e jovens, oportunidades educativas que lhes permitam exercer o papel protagonista no desenvolvimento sustentável local e regional é outra recomendação da Plataforma. A educação, nesse contexto, deve ir além da sala de aula. “A educação deve servir menos para permitir à pessoa escapar de sua realidade e mais para ajudar a transformá-la. Neste sentido, as pessoas devem se apropriar do conhecimento do local onde vivem, das suas dificuldades e de seus potenciais”, diz o documento.

E aqui vai um belo recado para nossas instituições de ensino superior: “Cada universidade pode gerar um centro de documentação sobre a sua região, e organizar uma rede de consulta científica para assegurar o conhecimento sobre todo o território, e ser uma articuladora do conhecimento necessário aos diversos agentes econômicos e sociais”.

Outro eixo da Plataforma é, de certa forma,  complementar à educação. Trata-se de apoiar e criar as condições para uma economia local dinâmica que reforce o acesso ao emprego sem prejudicar o ambiente. Alguns caminhos são o desenvolvimento de princípios e indicadores de sustentabilidade para as empresas, o encorajamento do mercado de produtos locais e regionais de alta qualidade, a diversificação de atividades para não ficar dependente de um produto de monocultura, por exemplo, e a promoção de um turismo sustentável.

                                                                          Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 05 de outubro de 2011).

Planejamento urbano para que ?

Qualquer que seja a cidade, quando se fala da necessidade de mais escolas, melhor atendimento de saúde, novas áreas verdes, incremento de empregos e valorização da cultura local,  ninguém é contra. Já quando se trata de planejamento e desenho urbano, há muita polemica. Não deveria ser assim, pois esses instrumentos são elementos fundamentais para se alcançar aqueles benefícios.

 A Plataforma Cidades Sustentáveis valoriza as políticas que harmonizam intervenções no espaço urbano e necessidades da população, em especial das porções mais vulneráveis. Da mesma forma, ressalta a prática de ações que  permitam vislumbrar o resultado conjunto e integrado das intervenções urbanas sob o ponto de vista de sua aparência, funcionalidade e de uso dos espaços. A Plataforma, divulgada há pouco pela Rede Social Brasileira por Cidades Sustentáveis e pelo Movimento Nossa São Paulo, objetiva ajudar a reflexão dos eleitores que em 2012 escolherão novos prefeitos e vereadores.

Curitiba (1,8 milhão de habitantes) é tida como uma vitrine de urbanismo ecológico e humano, a partir de um planejamento focado no desenvolvimento sustentável e na integração da região metropolitana. “O ponto mais original da estratégia é o que otimiza a eficiência e a produtividade dos transportes, ocupação do solo e desenvolvimento da habitação, integrando-os”. A cidade conta com 200 quilômetros de ciclovias e 52 metros quadrados de área verde por habitante (12 é o mínimo recomendado pela ONU).

A reutilização e regeneração de áreas abandonadas ou socialmente degradadas é um tipo de intervenção urbana cada vez mais necessária. Em Maimó, cidade sueca com 290 mil moradores, o decadente bairro de Augustenborg foi transformado em espaço sustentável social, econômica e ambientalmente, com a criação de uma importante usina solar que agora serve a toda comunidade. Em  Western Harbour, onde ficava uma área portuária e industrial, foi criado um novo bairro residencial com mil moradias, todas com energia produzida localmente e com origem em fontes renováveis.

Para evitar a expansão desmesurada da cidade, Sidney (Austrália, 4 milhões de pessoas), incentiva a concentração do crescimento no centro urbano, diminuindo o tempo de deslocamento de seus moradores garantindo aos moradores para o emprego, a escola, os serviços e o lazer.  Assegurar a compatibilidade de usos entre edifícios e áreas urbanas, garantir a conservação e renovação do patrimônio cultural são outras metas do bom planejamento. E também a adoção de critérios de desenho urbano e de construção sustentáveis, promovendo a arquitetura e as tecnologias de edificação de alta qualidade.

Outro importante vetor de sustentabilidade urbana indicado pela Plataforma é a boa gestão local dos recursos disponíveis no território da cidade, mas não só dela. “O conceito também pode se referir a um grupo de municípios que têm problemas em comum, como os que pertencem a uma mesma bacia hidrográfica”, caso de Mogi e a bacia do Alto Tietê. 

O que deve fazer ? “Trata-se de utilizar os recursos de maneira equilibrada em função das necessidades da população, sem prejudicar as gerações futuras, como recomenda a Agenda 21”.   Em termos concretos, combater o desmatamento, preservar os recursos hídricos, zelar pelo destino correto dos resíduos líquidos e sólidos e líquidos e incentivar novos estilos de vida e de consumo.

                                                                          Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 28 de setembro de 2011).

“Fora da caridade não há salvação”

O sucesso do filme que conta a vida de Chico Xavier é prova de que hoje o espiritismo é  compreendido e aceito por parcela respeitável da sociedade. Mas  há cem anos, num país predominantemente católico, uma doutrina ainda nova era objeto de preconceito. Mogi das Cruzes não fugia da regra.

No início do século passado, as reuniões dos adeptos tinham caráter restrito. Cada vez era na casa de um deles, Até que em 13 de junho de 1911 esse grupo pioneiro, em encontro  na casa do sr. Joaquim Benedicto Dias, criou o Centro Espírita Antonio de Pádua, agora centenário.

Consolidava-se ali um movimento iniciado anos antes por inspiração do imigrante português Antonio Gonçalves da Silva que, quando menino,  trabalhando como entregador de jornal em São Paulo, ganhou o apelido de “Batuira”, nome de uma ave de vôo ligeiro, tamanha sua eficiência no ofício. Adulto, empreendedor imobiliário, “Batuíra” acolhia em sua casa doentes pobres e escravos foragidos. Após a morte de um filho, abraçou a doutrina espírita. Fundou o Grupo Espírita Verdade e Luz, lançou um jornal com o mesmo nome e criou a Instituição Cristã Beneficente Verdade e Luz, para o  tratamento de enfermos tidos como incuráveis pela medicina terrena.

Mogi era uma das cidades que ele costumava visitar, por conta própria, para proferir palestras.  Aqui era acolhido na casa do Capitão Mariano de Souza e sua esposa Dona Elvira e fez bons amigos. “Desencarnou” em 1909, com 70 anos. Em 1910, faleceria o Capitão Mariano. O legado deles, porém, continuou firme com o surgimento dos primeiros médiuns. E nasceu a primeira instituição espírita da cidade.

A idéia da fundação do Centro teria vindo de uma mensagem psicografada de “Batuíra”, que  também sugeriu o nome do patrono. Uma homenagem ao frade franciscano que tinha o poder mediúnico de ser visto em dois lugares ao mesmo tempo.

O objetivo do CEAP era, e continua sendo, assistir material e moralmente, todos aqueles que necessitam de ajuda, sem qualquer distinção, conforme os ensinamentos cristãos de Allan Kardec.  Além de Joaquim Benedicto Dias, o grupo de fundadores tinha Francisco Wichan, Aleixo Custódio da Silva e Costa, Antenor de Oliveira Leite, Manoel Pinto Almeida, Guilherme Boucault, José de Sousa Franco, Manoel Luis dos Santos e Antonio Dias Pereira de Freitas.

Hoje situado na  rua Marechal Deodoro, o CEAP funcionou por várias décadas na Senador Dantas, 234. O prédio, que ainda existe,  tinha uma porta para a rua e um enorme salão onde aconteciam as sessões de evangelização. Na parede dos fundos estava escrito “Fora da caridade não há salvação”.  Aos fundos, um quintal com uma pequena casa e um galpão.

Uma marca forte do CEAP é a ajuda às mães carentes. Começou com a entrega dos “enxovaizinhos do bebê”, trabalho ao qual se dedicou por toda vida dona Delmira França Lopes. Nos anos 50, a sede foi ampliada com a compra de uma casa vizinha, adaptada para o funcionamento da Maternidade da Mãe Pobre, dirigida pelo dr.  Osmar Marinho Couto. Os médicos Célio Diniz Carneiro, Aristides Cunha Filho e Wilmes Gonçalves Teixeira eram os responsáveis pelo curso de parto sem dor e pelo pré-natal. O dr. Aziz Rizek era o pediatra. E a obstreta Carolina Ribas Tavares foi a primeira parteira, carinhosamente chamada de “dona Lula”.

Nessa época, já dirigia o CEAP “seu” Alvaro Campos Carneiro, de quem falarei na próxima semana.

                                                                                                  Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 15/06/2011)

A morada do Divino

Nessa época de festa, o Divino domina a cidade. Somos todos “divineiros”. Antes e depois do evento, contudo, o corre-corre da vida urbana não nos permite uma devoção tão intensa. Exceto na serra do Itapeti. A principal maravilha de Mogi é um Império do Divino em tempo integral. E cada capela e praticamente toda casa é um subimprédio. O ano todo.

No km. 15 da Estrada do Beija-Flor, uma moradia de paredes de taipa de pilão tem até “um quarto do Santo”, como Antonio Pereira de Paula, 63 anos, chama o lugar onde uma imagem do Divino se destaca num oratório que tem o encantamento daquelas coisas puras da roça. Herança de seo Benedito e dona Maria, que eram, por assim dizer, os zeladores, da histórica capela de Santo Alberto. Em um alambique em seu sítio, eles fabricavam a apreciada pinga Beija-Flor, hoje de uma produção limitada. Este ano, uns cem litros serão doados para a festa.

O casal tinha participação marcante nos preparativos da festa do Divino da própria capela, realizada no domingo seguinte ao da Pentecostes, quando se encerra a festa da cidade. A tradição é mantida por um sobrinho, Joaquim Marciliano, e outras pessoas da comunidade como seo Bento e dona Dulcinéia. Tem missa, procissão, quermesse e grupos de congada e Moçambique, como na cidade.

A devoção de dona Maria era tão grande que ela tratava como “o Senhor Divino” a imagem da pomba branca símbolo da terceira pessoa da Santíssima Trindade. Seguem existindo as rezas que seo Benedito promovia no oratório de sua casa todo dia 13 de maio, seu aniversário, e no dia de São Pedro. Aparecem pessoas de toda Itapeti para as quais são servidos café e bolo.

Mais para a encosta do lado do vale do Paraíba moram seo João Ferreira e dona Albertina. Ela faz de tudo pelo Divino. Na serra, conduz rezas, andando com a imagem de casa em casa, reminiscência do passado. Na Entrada dos Palmitos, conduz carro-de-boi, assim como a filha Silvana, também “carreira” de primeira, vocação que já está sendo seguida pelo neto. Carros e animais são do sítio da família, coisa agora mais rara na serra.

Antes da festa da cidade, dona Albertina trabalha como voluntária, fazendo doces na Casa da Festa. Doces da laranja, mamão, abóbora e batata doce, feitos com tacho de cobre no fogão a lenha. Uma parte das laranjas, aliás, vem da serra, doação do “Paulinho da Pinga”. A fé dos moradores da serra impressiona Josemir Ferraz de Campos, da Associação Pró-Festa do Divino. “São gente simples, de devoção profunda, coisa de pessoa sofrida, vivida… “. Ele conta ter conhecido na região de Santo Alberto um roceiro analfabeto que rezada em latim e sabia de cor o santo de todos os dias do ano.

Para seu irmão, Jurandyr Ferraz de Campos, que já foi festeiro, “Nhá Zefa” é um caso exemplar. Ela morava com a família na fazenda de Zeca Franco, na serra do Itapeti, e desde menina “conviveu” com o Divino. Seu pai era “bandeireiro” e costumava sair pela morraria, a pé, ao lado do “esmolar” e uns músicos, para angariar donativos para a festa. Ela ia junto.

“Nhá Zefa”, que viveu 91 anos, gostava de contar histórias fantásticas. Como a do pai que teve com seu pai morto. Ele teria lhe pedido para entregar ao Divino um dinheiro que arrecadara para a festa e que ainda estava em sua casa. “Nhá Zefa” foi conferir, estava tudo ali, guardadinho na morada do Divino. E ela pode concluir a tarefa do pai.

                                                                                         Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 08 de junho de 2011)

Hélio Borenstein – I

Vamos e venhamos: um empresário como Henrique Borenstein bem que poderia se dar ao luxo de não trabalhar no fim-de-semana. Não é assim que ele pensa. “Tudo o que eu fizer ainda é pouco perante o que meu pai fez”, me disse ele quando fui ao seu encontro, no escritório da Voluntário Fernando Pinheiro Franco, no início da tarde de um sábado.

Minha intenção era mesmo conversamos sobre seu pai, Hélio Borenstein, em busca de histórias de um dos maiores empreendedores de Mogi. Toninho Andari me acompanhava e testemunhou quase duas horas de um bom papo.

Filho de Gregório e Malka, Hélio nasceu em 1903, na cidade de Kiev, na Ucrânia e imigrou para o Brasil com 17 anos. “É melhor perder meu filho vivo”, disse sua mãe, temerosa de que o filho fosse vitimado na Primeira Guerra Mundial ou na Revolução Russa.  Depois de uma longa viagem no navio Teotônia (com que foi batizado o primeiro empreendimento da Helbor construído em Mogi), Hélio desembarcou no Rio e de lá seguiu de trem para São Paulo. Tinha por rumo trabalhar na casa de uma família amiga em Jacareí, mas a estação passou sem que Hélio descesse e o destino o trouxe para Mogi. “A família Grimberg lhe deu abrigo literalmente, deixando que meu pai morasse na loja de móveis onde o empregaram”.

Naquela época, a doceria Seleta, que ficava na Dr. Deodato com a Barão de Jaceguai, vendia uns doces fantásticos, de dar água na boca de seo Hélio. Mas ele resistiu à tentação. “Para economizar, ele almoçava só um filão – não havia pãozinho na época – com duas bananas. E mesmo depois que passou a comer direito, ele nunca deixou de comer as duas bananas após o almoço”.

Com as economias que juntou, no início da década de 30, ele montou sua própria loja, a Casa Hélios, onde vendia móveis, utilidades domésticas e roupas. “Em 1936, a cidade não tinha 30 mil habitantes e a loja possuía um cadastro de oito mil clientes, que faziam suas compras a prazo, controladas à mão por caderneta”, conta o presidente da Helbor,.

“Bater na barriga da perna do meu pai era o mesmo que bater numa madeira de tão dura que era. Ele saia com sua bicicleta ou a pé levando mercadorias para vender, de porta em porta, pela região toda. Tinha garra, fibra, vontade de trabalhar”, conta o filho, com empolgação e orgulho.

O prédio em que seo Hélio montou o  primeiro negócio existe até hoje. Fica a dez passos do Mercado Municipal, na Coronel Souza Franco, e ainda pertence à família.

No Mercado havia a banca de Joaquim de Mello Freire, o “capitão Quinzinho”, que – à parte da insígnia que ostentava da Guarda Nacional – vendia lingüiças, das boas. No outro lado, na Flaviano de Mello, ficava a casa do capitão, onde morava sua filha Valentina, conhecida como “Loloya”. Tocava piano muito bem e chegou a ser pianista do Teatro Municipal de São Paulo, sob a regência do maestro João Julião. Em Mogi, ela atuou no Cine Parque, empreendimento de seu pai, fazendo o acompanhamento musical de filmes mudos. Na época, os freqüentadores levavam suas próprias cadeiras para se acomodarem no cinema.

Hélio e “dona Loloya” casaram-se em 1935 e tiveram dois filhos: Henrique e Marcos. “Meus pais namoravam escondido do meu avô. Minha mãe saia para ir bordar meia na casa do José Curi, ali perto, e dona Maria, a esposa, dava cobertura para eles. Casaram-se na Penha, meio fugidos…”.

(Na próxima crônica, cine Urupema, Belver, COTAC…).

                                                                                                                      Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 18 de maio de 2011)

Something in the way…

março 24, 2011 1 comentário

Nesses tempos em que tudo está mudando, nem as lembranças de nosso passado ficaram de fora. O conceito de patrimônio histórico foi ampliado há poucas semanas com o “tombamento” da  faixa pedestres localizada em frente ao estúdio londrino Abbey Road, eternizada na capa do álbum homônimo dos Beatles em 1969. É a primeira sinalização urbana a ganhar esse status em todo o mundo.

“Essa travessia não é um castelo ou uma catedral, mas graças aos Beatles e a uma seção matinal de fotos de 10 minutos, ela também tem o direito de ser vista como parte do nosso patrimônio”, afirmou  John Penrose, ministro do turismo no Reino Unido.

Na capa do LP, Paul, John, Ringo e George aparecem cruzando a rua sobre a faixa. O local não é exatamente o mesmo, a travessia foi movida por alguns metros devido ao trânsito, mas a fama permaneceu. Toda hora tem turista visitando o lugar e parando o tráfego de veículos só para imitar a célebre cena dos “reis do rock”.  Se você quiser conferir, veja imagens em tempo real no site www.abbeyroad.com/visit.

O conceito tradicional de “patrimônio histórico” refere-se a construções antigas, obras de arte de mestres célebres, enfim só coisas gloriosas ligadas a um passado que nem todos reconhecem como parte de sua vida. Nos anos 1970, a idéia foi expandida para abranger não apenas grandes monumentos, mas um conjunto de bens culturais mais próximos da identidade dos cidadãos comuns.

O “patrimônio cultural” engloba paisagens, lugares sem valor arquitetônico mas com grande valor afetivo para a comunidade (tipo o cine Belas Artes, em São Paulo),  tradições como a festa do Divino de Mogi, a aguardente Gentileza de Maria da Fé (Minas), artesanatos, saberes, o samba de roda do Recôncavo Baiano, e o ofício das paneleiras de Goiabeiras (Espírito Santo).

O tombamento da travessia de seis faixas brancas da Abbey Road vai além. Para São Paulo, a medida chega bem no meio da discussão da manutenção ou não do famoso relógio luminoso do Conjunto Nacional, na avenida Paulista, que completará meio século de existência em 2012. Desde 1976, seu letreiro carrega a marca do Banco Itaú, só que em 2007 a publicidade teve que ser apagada por causa da Lei Cidade Limpa. Recentemente, porém, o banco foi multado pela Prefeitura após a pintura de sua logomarca em azul e amarelo. Agora, a instituição apela para os órgãos do patrimônio e, se perder, vai deixar o condomínio do conjunto sem uma verba que ajuda muito sua manutenção.

Enquanto isto, no Rio, a discussão é outra. Por determinação do Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a Prefeitura deverá retirar de uma praça do bairro da Glória o busto de bronze do ex-presidente Getúlio Vargas. Nada contra ele, ao contrário, a iniciativa até o protege, pois a escultura é medonha, com três metros de altura, sobre uma base de dois metros e meio. O povo a apelidou de “Cabeção”.

Para Paul McCartney, autor da idéia da foto, o tombamento da travessia é “a cereja do bolo”, pois os estúdios Abbey Road, onde os Beatles gravaram a maior parte de sua obra, já possuem a mesma certificação histórica.  Ou seja, aquele pedaço no norte de Londres se eterniza como a “Meca para os fãs mundiais dos Beatles”.  E pensar que John Lennon, apressado, queria sair logo ali: “deveríamos estar gravando o disco e não posando para fotos idiotas”.

                                                                   Júlio Moreno

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 23/03/2011) 

A casinha do circulo das flores

setembro 25, 2010 1 comentário

Quem tem hoje 40 anos ou mais certamente há de se lembrar de Chang Dai-Chien, um chinês de careca lustrosa e uma barba branca longa, figura estranha que andava pelas nossas ruas apoiado num cajado e com um bugio nos ombros.  

Mais curiosos com sua excentricidade do que com suas habilidades artísticas, convivíamos, sem dar lá muita bola, com “um dos mais conhecidos e prestigiados artistas chineses do século XX”, como informa hoje a Wikipédia, a enciclopédia aberta da Internet.

Nascido em Neijiang, na China continental, em 1899, ele faleceu em 1983 em Taipei. Fugindo do comunismo em 1948, Chang Dai-Chien foi para a Argentina e, no início da década seguinte, veio para o Brasil, direto para Mogi.

Morou primeiro num casarão da rua Santana, depois foi com seus macaquinhos para um belo sítio da Capela do Ribeirão. Montou seu atelier em volta de um jardim com 1700 pés de caqui por ele nomeado de “horta das oito virtudes”. Tudo, mais tarde, coberto pelas águas da represa do rio Jundiaí.

Além de Mogi, em 1971 o artista montou outra casa na hoje badalada Carmel de Clint Eastwood,  na Califórnia.  Mais precisamente em Pebbe Beach, a “praia dos seixos”. Em seu tempo, a cidade era mais conhecida por suas galerias de arte e muitos “hippies”, que se encantavam em bater papo com aquele “monge” na pracinha principal.

Em maio de 1997 tive o prazer de conhecer a imensa casa de madeira da Majela Road, 1040. “Papai não se interessa muito pela casa, mas sim pela natureza ao redor” contou-me Johnson (Hsin Chien Chang), um dos 16 filhos que o “mestre” teve em seus quatro casamentos.

Outro irmão, o Paulo (Sing Yee Chang),  também nos acompanhava na visita à casa, onde residia Wen Pu Hsu, a última sobrevivente das viúvas do pintor.

Logo na entrada da casa,  senti a mágica do lugar. A inscrição Huan Pi An que aparece acima da porta quer dizer  “casinha num círculo de flores”. Na frente, um jardim onde se misturam pedras enormes  (levadas ali por guindastes) com pés de ameixas e troncos de  “redwood” mortas. Uma pequena amostra do jardim interno, que o  pintor fez os filhos construírem com as próprias mãos sobre um  chão de areia pura.

Plantas japonesas, pedras, muitas pedras, bambu, uma cachoeira que secou,  um pequeno pagode, “bonsais” e muitos caminhos entre folhagens,  dão ao lugar uma aparência maior do que é de fato.

Uma das preciosidades do jardim é uma pedra de granito com inscrições que significam “túmulo dos pincéis”. Uma homenagem que Chang prestou aos pincéis que fizeram dele um virtuoso do  impressionismo e do expressionismo com forte influência dos mestres da China feudal. Todos os pincéis estão enterrados ali. No verso da pedra, uma poesia escrita pelo pintor, cujos quadros levam além da assinatura ao menos um verso.

Ao lado do jardim, o estúdio. Numa parede, os pincéis; sobre uma enorme mesa, os potes onde o “mestre” fazia a mistura de suas tintas (todas a base de minerais moídos); em todo o canto pedras, inclusive de Salto do  Pirapora, repousando sobre pedestais de madeira feitos em Hong Kong.  

Foi um encontro alegre, inclusive pela forma amena com que os irmãos recordaram o rigor do pai, que não admitia erros e conduziu a vida dos filhos até morrer.

Não entendo porque, entre todos os lugares onde Chang Dai-Chien morou, Mogi seja o único que não lhe prestou uma devida homenagem.

(Publicado em “O Diário de Mogi” de 02/06/10)

A Economia do Divino

Lúcia Helena, minha irmã, faz aniversário hoje. Mas o presente quem ganhou fui eu, os livros A Fé e O Trabalho de Lailson Santos e Robson Regato. Um documento sensível, que revela os bastidores  da Festa do Divino da construção dos carros-de-boi na zona rural ao  ritual de queima, “para que subam aos céu”, dos pedidos dos devotos deixados na urna do Império do Divino.

Motivado pela festividade, trato hoje de um tema pouco falado no Brasil: a Economia da Cultura.  

Esse é “um setor estratégico para o País”, na definição do Prodec (Programa de Desenvolvimento da Economia da Cultura), do Ministério da Cultura, criado em 2006.

A Economia da Cultura abrange espaços de difusão de cultura e lazer, tais como  museus, prédios históricos, cinemas, teatros e afins.  Mas é muito mais, por envolver também todos os setores relacionados com a criação artística ou intelectual, individual ou coletiva: música, audiovisual, artes plásticas, livros, design, moda, arquitetura, arte popular e artesanato. E ainda as festas e expressões populares, como é o caso do Divino.

A produção, a circulação e o consumo de bens e serviços culturais começaram a ser percebidos como um segmento de peso na economia no pós-guerra, mas só na década de 1970 o conceito começou a ganhar corpo, até alcançar 20 anos depois o status merecido, conta Paula Porta, responsável pela implantação do Prodec.

No Brasil, diz o Ministério da Cultura, mais de 320 mil empresas atuam hoje no setor cultural, gerando 1,6 milhão de empregos formais. 

Eventos culturais como a Festa do Divino são classificados pelos estudiosos com o pedante termo de “ativos intangíveis”. Isto porque seus impactos sociais e políticos são consideráveis. Eles “carregam informação, universos simbólicos, modos de vida e identidades”. Sua fruição une fé, cultura popular, comportamentos, imaginário e turismo.

É inegável que o trabalho voluntário dos festeiros, das quituteiras, das costureiras das bandeiras, das cozinheiras do afogado e dos integrantes das congadas e moçambiques gera dividendos não apenas culturais, mas também econômicos, sociais e afetivos para a cidade.

O valor da inclusão social da festa é algo que merece estudo científico. Da mesma forma, Mogi precisa assumir e fomentar nossa  Economia da Cultura, algo que depende de uma política pública abrangente.

Tudo começa com a identificação das vocações locais capazes de gerar dinâmica econômica, Divino à parte. Não falo só de coisas com raízes. Há que se considerar, na outra ponta, as modernas “indústrias criativas”.

Paulínia, na região de Campinas, é um bom exemplo. Por iniciativa da Prefeitura, em poucos anos a cidade passou a ser conhecida mais como o principal pólo cinematográfico do País e não mais apenas como o maior centro brasileiro de  refinação e distribuição de combustíveis.

As universidades mogianas bem poderiam ajudar nessa jornada, como centros de pesquisa, facilitadores de acesso às novas tecnologias e formadores de profissionais qualificados para o segmento cultural.

Empreendedores e cooperativas se encarregariam da viabilização das iniciativas. O poder público, além de liderar o processo, deveria prover espaços, informações, programas de capacitação e acesso a financiamentos já criados por bancos oficiais.

Coisa difícil ? Nem tanto, basta querer e colocar a imaginação a funcionar. Os livros de Lailson e Robson estão ai para provar.

 (Publicado em “O Diário de Mogi” de 26/05/10)