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Pelas ruas de Çukurcuma

Um filete de água barrenta margeia o meio-fio de um dos lados da rua. Vem da demolição de mais uma antiga casa de madeira sobre a calçada na parte alta da ladeira  Çukurcuma (isso mesmo, com cedilha na inicial),  chegando até o hamam, uma casa de banho turco cuja tabela de preços não indica ser grande coisa.

Lugar estranho para um passeio pela Istambul das mesquitas, dos palácios dos sultões e da panorâmica paisagem do Bósforo, o estreito que a divide em duas partes: uma na Europa, outra na Ásia. O turista, no entanto, tem interesse nisso mesmo, algo que não está no guias. Ou ainda não está.   

Meu desejo é vivenciar o universo urbano descrito nas obras do escritor Orhan Pamuk, Prêmio Nobel da Literatura de 2006. Estamos em pleno verão com 30 graus de temperatura e uma atmosfera especial criada por mais um Ramadã. Durante um mês inteiro, o muçulmano pratica o jejum desde que as vozes que ecoam das mesquitas anunciam o início das preces, no meio da madrugada, até elas serem ouvidas pela última vez no dia, no início da noite. Ai começam as confraternizações entre familiares e amigos, sem nada alcoólico para animar.   

A alegria dos turistas

Hospedado na região do glamouroso Pera Hotel, o preferido dos passageiros do lendário Orient Express, vou a pé ao meu destino. Basta pegar a Itiskal Cadessi rumo à praça Taksin. A Itiskal é hoje uma rua de pedestres, com grande concentração de lojas de marcas internacionais, onde trafega deliciosamente um bondinho vermelho. A Taksin é a praça principal de Istambul, local das manifestações políticas e culturais mais importantes.

Na altura do liceu Galatassaray, que deu origem ao time de futebol do mesmo nome, dobro à direita na Yeni Carsi Cadessi e vou descendo a ladeira. Cada metro caminhado me leva mais e mais a uma Istambul ainda reservada.
 

Charmosos balcões

Surgem os primeiros prédios com balcões de madeira fechados. É cedo, furgonetas de entrega fazem seu trabalho abastecendo os pequenos bazares e mercearias da rua. Entro nas estreitas, curtas e íngremes travessas secundárias. Prédios de alvenaria amarelos e cremes contrastam com as velhas construções de madeira. Já estou em pleno coração de Çukurcuma, um histórico bairro do distrito de Beyoglu (em turco o g tem uma espécie de “til”, acento que não existe em nossos teclados).

 A pronúncia correta do nome do bairro é “chu-KUR-ju-ma”, como me corrigiu Orhan Pamuk em ligeiro papo que mantive com ele após sua conferência no encerramento do ciclo Fronteiras do Pensamento, dia 6 de dezembro, na Sala São Paulo. 

À espera do "enobrecimento"

É um bairro histórico e popular, no passado dominado por imigrantes gregos, armênios e levantinos mediterrâneos. A área passou por um período de esquecimento e decadência e agora está em processo de transformação. O que explica a existência de uma moderna loja de móveis de design em frente a um ferro-velho, bares boêmios de paredes grafitadas ao lado de prédios residenciais, catadores de lixo rondando galerias de arte, vitrines de antiquários que abafam a gritaria dos meninos que jogam bola na rua e contrastes desse gênero.

Dá para perceber o que os estudiosos urbanos chamam, de forma intelectualizada, de “gentrificação”, neologismo que define o processo de “enobrecimento” de um bairro. Ou, em linguagem mais simples, a substituição de uma população pobre por uma mais abastada. Um Soho.

Çukurcuma é uma contração da expressão “Cuma namazını şu çukurda kılalım”, que lembra que era naquela região de barrancos que o sultão otomano Mehmed II fazia suas orações das sextas-feiras, antes de conquistar Constantinopla (atual Istambul), acabando com o Império Bizantino, em 1453. Ele tinha só 19 anos quando completou a façanha.

Morada do passado

Volto a descer a ladeira do liceu. Paro para fotografar, na esquina da rua Gul Baba, uma casa de madeira escura, de três pisos. Varal de roupa do lado de fora e vasinhos de flores no beiral dos janelões com vidros que se abrem na vertical. Cortinas brancas Um intruso cano de PVC, para conduzir a água da chuva, macula a fachada centenária. A construção é uma das remanescentes da arquitetura original do bairro, muitas delas “reclinadas sobre a calçada como à beira de um colapso” (Pamuk).

Cruzo com um bar em cujas mesinhas da calçada motoristas de táxi jogam gamão no aguardo de clientes. Dois suportes de ferro exibem mais de vinte – contadinhos – diferentes jornais do dia, todos com manchetes em letras garrafais e uma profusão de cores.

O bar faz esquina com a rua por onde corre o filete de água barrenta, meu destino. A estreita via, “popularmente conhecida como ladeira” (Pamuk),  tem o mesmo nome do bairro: Çukurcuma. O coração pulsa de ansiedade. Eu estou a poucos passos da (ao menos na minha imaginação) mística casa onde está sendo instalado o “Masumiyet Müzesi” ou “Museu da Inocência”, o mesmo nome do primeiro livro que Orhan Pamuk escreveu após  ganhar o Nobel.

Na esquina do primeiro beco à direita, fica a casa de banho turco, onde um cartaz diz ser a mais antiga da cidade, algo do qual duvido. Há carros parados nas laterais, mas não há trânsito e assim posso caminhar pelo meio da estreita rua.  

A bandeira do Fenerbarhçe, o grande rival do Galatassaray, pende de uma sacada à esquerda.  Na esquina do terceiro beco, no lado direito, estou numa vendinha.  Compro uma garrafa de água. O rapaz que me atendeu só fala  turco, digo umas duas três vezes o nome de Pamuk, ele deduz o que procuro e mostra um predinho cor de vinho intenso,  na esquina da viela Dalgiç, o segundo beco da rua.  Eu tinha passado direto pela casa do museu e não percebi! Como isso pode acontecer? Afinal, sua pintura novinha a distingue das demais. Mas não há cartaz algum no lado de fora.

Masumiyet Müzesi

É um prédio de frente estreita, fundo extenso, com três pavimentos, contando-se o térreo.  A construção, de 1897, fica próxima do estúdio onde Pamuk trabalha. Ele a comprou há 12 anos, com ajuda de amigos arquitetos a restaurou e ambientou ali uma boa parte de seu romance. Agora, vai abri-la para visitação pública, na forma de um museu. 

O romance se passa nos anos 70, época em que Istambul vivia dias agitados, com muitos atentados políticos atrasando uma sonhada modernização social e cultural nos moldes europeus O livro é narrado por Kemal, filho de um rico empresário, com mais de 30 anos, que abandona a noiva Sibel, inteligente e moderna. Ele tomou a iniciativa por causa de uma obsessiva paixão por uma prima de 18 anos, a bela Fusun (em turco o nome leva um trema no primeiro u), com quem mantém um secreto romance antes do noivado.

Rompido o noivado, ele sofre tremendamente até reencontrá-la, só que Fusun já se casara com um amigo de infância, o que ajudou a limpar a honra da moça de família pobre e tradicional que tinha feito sexo antes do casamento. Com o apoio dos pais dela, Kemal então passa anos visitando a casa deles, pelo prazer de estar junto dela ainda que seja só para ver televisão. Prazer que se prolonga com a posse de objetos retirados sorrateiramente da casa de Fusun: um pente, uma ponta de cigarro com o batom dela, fotos, vasinhos, um brinco e até um fecho da porta do banheiro.  Não vou contar mais nada, recomendo a você ler o livro, pois vale a pena.

De início, segundo o escritor, Kemal não se dá conta de que estava iniciando uma coleção, “mas apenas respondendo a algo espiritual, a uma dor amorosa”. Só mais tarde o personagem pensou em criar o museu juntando todas aquelas peças, fazendo delas o fio condutor de sua história.

Pamuk em SP (foto Greg Salibian)

Isso na ficção, pois na realidade Pamuk começou o romance com a idéia de fazer o museu, o que o obrigou a passar um bom tempo coletando objetos da década de 70 para servirem de inspiração, assim como comprar a casa, relembrar seus tempos de roteirista de cinema, comprar vestimentas da época,  buscar fotos de paisagens e pesquisar como eram os anúncios, rótulos de bebidas e os restaurantes da moda.     

São coisas do cotidiano, das pessoas comuns, ao contrário dos grandes museus que só tratam dos que tiveram poder. De alguma forma, o museu – medidas as devidas proporções – me lembrou o Museu Memória do Bixiga, criado pelo saudoso Armandinho Puglisi a partir de doações de objetos de antigas famílias do bairro. Um museu, como ele gostava de chamar, dos anônimos varridos pela história oficial, parafraseando outro escritor, Jorge Amado.

Ohran Pamuk é o próprio curador do museu que transmutou da ficção para a vida real.  Tudo o que está no livro vai ser exposto. A inauguração deve acontecer provavelmente em abril de 2012, pelo que ele me disse.   

O zelador da casa ?

Passo uns 15 minutos fotografando a casa por fora. Chego até a deitar no chão para buscar os melhores ângulos, apesar do forte odor daquela água barrenta que escorre junto ao fio da calçada. Um gato branco, em cima de um container de lixo, atende acenos, vira-se e dá ambiência para uma foto em dois planos.

 
Em outra, pego o reflexo na janela da casa de roupas estendidas nos prédios

Reflexos do cotidiano

do lado oposto da rua. Naqueles minutos creio ter experimentado a sensação da arte de criação descrita por Pamuk. Deixando de lado a modéstia, me pergunto se eu não teria realizado, com imagens, o que Pamuk diz fazer com palavras: tornar as coisas irrelevantes importantes e as coisas importantes irrelevantes. Ele também afirma que o romance é uma arte visual e, ao contrário do que muitos pensam, para o escritor o mais difícil não é achar primeira palavra, mas definir a primeira imagem de um livro. E, de fato, eu não teria escrito este texto, não tivesse ido retratar o cadinho urbano que aqui descrevo.   

Na conferência, Orhan Pamuk contou que muitos – em especial as mulheres – lhe perguntaram se um dia teve uma paixão como a de Kemal ou, mais diretamente, se não seria ele próprio o personagem narrador? Ele diz que não, mas as pessoas seguem descrentes, tamanha a riqueza dos detalhes e a emoção da narrativa. Não dá para ser só fantasia. Ocorre que a arte do ficcionista, diz, é justamente mentir. Assim, se o leitor insiste, ele deixa barato, não se esforça mais, que continue pensando que ele e Kemal são uma só pessoa. No fundo, confessa,  ele deseja mesmo que o leitor pense dessa forma.

No entanto, se ele próprio deixa a dúvida fica no ar, nós temos todo o direito de ampliá-la. É legítimo, então, perguntar se houve em sua vida uma prima como Fusun? Quem seria?  Ele se cala. ”Ler um romance significa compreender o mundo por uma lógica não cartesiana – ou seja, com a constante e inabalável capacidade de acreditar ao mesmo tempo em idéias contraditórias”. Ele não se sente trapaceiro ou hipócrita por dar abrigo a esses contraditórios.

“A arte de escrever romances é a capacidade de perceber os pensamentos e as sensações dos protagonistas numa paisagem – quer dizer, entre os objetos e imagens que o rodeiam”, diz ele em seu livro mais recente, “O romance ingênuo e o sentimental”. A frase define bem o resto de minha caminhada pelo bairro. Busco onde haveria ainda o autêntico.

Esbarro primeiro numa banquinha de rua de um senhor de boina rústica e barba branca. Comprei dele um cachimbo com bocal de barro e pito de ferro e cobre, “da época dos sultões”. Paguei 25 liras turcas, algo como 25 reais. Ele o embrulhou numa folha de jornal e prendeu com elástico. Hoje me arrependo de não ter comprado outras bugigangas do velho, seriam mais significativas que as mesmices que trouxe dos pontos turísticos de Istambul. Como Kemal (Pamuk ?), também coleciono objetos e o cachimbo está entre os que me são mais afetivos. 

Passeio pela história

Descendo e subindo  ladeiras, caminho na direção ao Bósforo, onde já se pode ouvir as sirenes das balsas. Não vou, contudo, até  Cihangir,bairro boêmio da moda,  às margens do Estreito. Fico em Firuzaga, onde encontro outra pequena mesquita, a Haci Piri Cami, do século XVI, na parte alta de uma praça. Na parte baixa funcionam estabelecimentos comerciais, dando a impressão de que eles e o templo são uma construção só.  

O kebab não tem pressa

Um dos negócios é um restaurante de kebabs (pedaços de carne enrolados em finas fatias de pão). Garçons conversam tranquilamente sentados no lado de fora. A poucos metros, as janelas de um prédio desbotado se destacam pelos desenhos de gatos dos vidros – aliás esses bichinhos são numerosos em Istambul. Vendedores de utensílios usados puxam seus carrinhos de madeira com pinturas de flores. Nem oferecendo dinheiro consegui tirar a foto de um deles.   

Tomo um çay (chá) e descanso numa pequena meyhane (equivalente a um botequim). Volto a caminhar. Estou perdido. Subo uma ladeira onde um jovem me oferece para fumar um narghilé.  Recuso. Uns 50 metros depois, chego a uma movimentada rua de pedestres, com um bondinho vermelho indo e vindo. Voltei à realidade turística da Itiskal Cadessi, mas Ohran Pamuk continua por perto com seus livros em destaque nas prateleiras de madeira escura da minúscula na livraria Robinson Crusoe.

“Volte a Istambul”, convidou o escritor após autografar meu exemplar de “O Museu da Inocência”. Se eu voltar, penso em escolher outra estação do ano, para experimentar a sensação de ver a casa-museu “banhada de pérola peculiar dos dias de cerração”.

                                                      Júlio Moreno    (texto e fotos de Istambul)

  1. heloisa de araujo moreira
    fevereiro 8, 2012 às 12:27 am

    Que texto lindo, Júlio Moreno! O que não chega a ser surpresa, mas é uma bela viagem por Çukurmana e parte de Istambul. bj, Heloisa.

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