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Como dominar as metrópoles ?

Exatos 40 anos depois do então prefeito paulistano Figueiredo Ferraz surpreender o Brasil com a frase “São Paulo precisa parar”, o gigantismo e a governança de nossas metrópoles volta à cena. Em abril, a Camara Federal instalou uma comissão especial para analisar o PL 3460/04 que objetiva criar o “Estatuto da Metrópole”. Em maio, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do MEC, promoveu o Seminário Internacional “A Metropolitação Brasileira e os Desafios da Gestão Urbana”, para orientar  futuros editais de programas de pós-graduação que fomentem a produção de conhecimento e a formação de recursos humanos qualificados para a temática. 

A emblemática frase de Figueiredo Ferraz foi um ousado contraponto aos ufanistas “São Paulo não pode parar”, lema de Adhemar de Barros, ou  “São Paulo, a cidade que mais cresce no mundo”, slogan do IV Centenário propagado nos cartazes dos bondes da Light. Um choque pois só se falava no “milagre econômico” promovido pelo regime militar. O que parecia ser uma ofensa revelou-se uma advertência. E séria.    

A capital tinha na ocasião 6 milhões de habitantes e a mancha urbana de 36 municípios ao seu redor cerca de 8,2 milhões. Em 2010, a cidade somava 10,6 milhões de  habitantes e sua  região metropolitana 19,7 milhões. O governo paulista já não fala mais apenas em Grande São Paulo, mas sim na “macrometrópole paulista”, resultante da conurbação da região metropolitana da Capital com a Baixada Santista e a área metropolitana de Campinas, somando 25 milhões de habitantes. O número cresce se forem agregadas as regiões metropolitanas do Vale do Paraiba e  do Litoral Norte, recém criadas, assim como as chamadas “aglomerações urbanas” de Jundiaí e Sorocaba.

Confusões e tensões  

O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)  relaciona 37 “regiões metropolitanas”, definidas por leis estaduais e três regiões integradas de desenvolvimento econômico (Rides), delimitadas por lei federal. Já pelos critérios do instituto em rede Observatório das Metrópoles, o Brasil possui verdadeiramente 15 “espaços metropolitanos” (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Curitiba, Salvador , Recife, Fortaleza, Campinas, Manaus, Vitória, Goiania, Belém e Florianópolis) Eles concentram  36,3% da população brasileira e 62% da capacidade tecnológica do país.

A confusão resulta de dois fatores. Um deles é a falta de definição do conceito de metrópole contemporânea, no contexto de uma “modernidade líquida”, segundo a arquiteta Nadia Somekh, professora da Universidade Mackenzie de São Paulo e representante brasileira na UIA (União Internacional de Arquitetos). Devemos falar em “regiões metropolitanas”, “cidades-região”, “megacidade”, “metápole” ou “megalópole” ?  “Questiona-se mesmo se é possível falar em cidade contemporânea quando ainda se identificam enormes desigualdade sociais na macrometrópole”. Qualquer que seja a denominação, nossas regiões metropolitanas, diz ela, “pedem essa chancela para disputar recursos, não para resolver as questões próprias da organização metropolitana”.

Outra questão é a governança. Nosso primeiro sistema de regiões metropolitanas foi criado por decreto federal, em 1973, em plena ditadura. Os Estados foram incentivados a formular  seus próprios modelos de gestão metropolitana. A Constituição de 1988 mexeu no quadro, ao conferir status de ente federativo aos municípios. Com isso, houve um reforço da autonomia dos municípios na gestão e regulamentação do uso do solo. O poder dos Estados ficou restrito à definição dos aglomerados metropolitanos de seus territórios.  E à  União coube as  diretrizes de desenvolvimento urbano e a elaboração de planos regionais.

O novo arcabouço tem muitas falhas. Uma delas, segundo o Observatório das Metrópoles, é a ausência de critérios e estratégicas para que os Estados definam a condição metropolitana, o que resultou “na constituição de regiões metropolitanas extremamente heterogêneas quanto ao grau de integração dos municípios ao fenômeno metropolitano”. Houve até casos de criação e posterior desmanche de frágeis regiões metropolitanas. Outro problema foi a falta de regulação sobre as funções públicas de interesse comum, o que dificulta uma ação das autoridades  para coordenar soluções para problemas como a mobilidade, os recursos hídricos e o destino dos resíduos sólidos, tipicamente metropolitanos.

Segundo o IPEA, armou-se um jogo de tensões entre descentralização e federalismo, com problemas de coordenação vertical e horizontal para colaboração entre os níveis de governo.  Cada prefeito tem o direito legal de assumir um comportamento autárquico. E o pouco de política urbana que existe é a montagem de políticas setoriais não integradas, algo bastante criticado no seminário da Capes.

“Essa histórica ausência de articulação entre políticas setoriais impede uma alavancagem do Estado sobre o mercado imobiliário e gera um calendoscópio de planos diretores desconectados na escala regional-metropolitana”, segundo o pesquisador Jeroen Klink, da Universidade Federal do ABC. “O desmonte das estruturas de planejamento metropolitano, o revigoramento do planejamento municipal e a fragmentação do espaço metropolitano redirecionaram os estudos sobre a metrópole. Estes passaram a privilegiar temas setoriais e/ou análises sobre porções do espaço metropolitano”, diz a professora Norma Lacerda Gonçalves, da Universidade Federal do Pernambuco

 “O Ministério das Cidades tem uma visão municipalista. As regiões metropolitanas são tratadas de acordo com a visão do governo federal dos anos 70. Embora no governo Lula o PAC tenha sido implantado, essa política não foi vinculada a uma política metropolitana. Uma política de desenvolvimento que não está sendo formulada ancorada no território.  Na França, a metrópole passou a ser uma questão nacional”, diz Nadia Somekh.     

Procura-se um modelo

“Estamos diante de um paradoxo. As cidades-regiões, tradicionais locus do desenvolvimento, hoje representam também arenas estratégicas no processo de desenvolvimento e de reestruturação produtiva, mas existe um vácuo institucional quanto ao planejamento e a gestão destes territórios”, sintetiza o  Jeroen Klink.

Não existe, nem provavelmente existirá, um modelo único organizacional-gerencial para tratar da ação coletiva em áreas metropolitanas. Uma alternativa  radical é a constituição de uma região autônoma, um novo ente federativo, por meio de emenda constitucional, hipótese que a senadora Marta Suplicy (PT-SP) chegou a aventar no seminário “Brasil Metropolitano”  que ela promoveu em setembro de 2011.  

No Canadá, discute-se a fusão de cidades, a formação forçada de megacidade, para diminuir os aspectos negativos da fragmentação político-administrativa.  Vancouver, porém, tem um modelo institucional assentado na cooperação voluntária das municipalidades integrantes, as quais interagem por meio de uma agência de poderes circunscritos e voltada para a prestação de serviços básicos de natureza metropolitana, conforme o economista Ricardo Brinco, do Observatório das Metrópoles.  

Existem arranjos flexíveis e pragmáticos, como os pactos setoriais por projetos e programas como a revitalização da região do Ruhr, na Alemanha, que consumiu toda uma década.  Foi coordenada por uma agência privada, mas com controle acionário do governo federal.

Na Espanha, o  arranjo na região de Madri, privilegiando fortemente a capital,  tem sofrido crescente contestação dos municípios menores, por falta de uma maior participação da sociedade. “Essa discussão de modelos é delicada, temos que caminhar com ponderação, sem nos esquecermos da democracia e da cidadania”, lembrou a professora Johanna Looye,  da Universidade de Cincinnati (Estados Unidos), participante do seminário da Capes.

No Brasil, os arranjos institucionais cooperativos foram facilitados pela lei de  consórcios públicos intermunicipais de 2005, regulamentada em 2007.  Só que a lei não garante, por si, os recursos necessários para os investimentos regionais. E as iniciativas existentes são poucas.

Um caso pioneiro foi o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, criado há 20 anos. A Câmara Regional reúne, além dos 7 prefeitos, a sociedade civil, representada por empresários, sindicatos e governo estadual. São muitos os resultados concretos: investimentos regionais em saúde, macrodrenagem,e programas de inclusão social; a criação do campus da Unifesp em Diadema e Universidade Federal do ABC, além da expansão do pólo petroquímico.

A região metropolitana de Belo Horizonte adotou uma gestão  compartilhada, por intermédio da Agencia RMBH, criada pelo governo estadual como uma “autarquia territorial”. A Agência cumpre as decisões de um Conselho Deliberativo Metropolitano, cujo responsável é escolhido pelo governador numa lista tríplice elaborada pelos prefeitos da região. Uma assembléia realizada a cada dois anos elege dois representantes dos cidadãos metropolitanos para o Conselho. O foco inicial da Agência RMBH é o ordenamento territorial, mas em breve deverá cuidar também da regulação dos transportes metropolitanos.

O governo do Estado de São Paulo criou este ano uma Agência de Desenvolvimento, o Fundo Metropolitano e o Conselho de Desenvolvimento integrado por prefeitos, secretários estaduais, representes da Assembléia Legislativa, mais um Conselho Consultivo com participações da sociedade civil e de vereadores.

Questão política

“A governança metropolitana é muito mais uma questão política do que uma questão de modelo”, diz a professora Norma Lacerda Gonçalves. “Reformas institucionais que visam transformar a organização do sistema de atores com o intuito de estabelecer ou reforçar um poder metropolitano pode favorecer a governança metropolitana. Mas, se este sistema político é fortemente concentrado ou fortemente disperso, torna-se um elemento desfavorável à governança”.

Em estudo realizado em conjunto com a pesquisadora Suely Leal, a professora da UFPE lista quatro tipos possíveis de governança metropolitana:

1 – Clássico ou tradicional: a articulação dos atores econômicos com o Estado se dá por meio das elites políticas, mantendo padrões de governança na forma patrimonialista e clientelista.

2 – Democrático popular: a articulação dos atores econômicos e sociais ocorre mediante  mecanismos institucionais  democráticos dos quais participam,  além dos segmentos populares, as elites modernas (capital imobiliário, comercial e de serviços) e o setor público (dirigentes e quadros técnicos).

3 – Corporativo: a associação entre as frações das elites modernas e o Estado, nas formas de gestão compartilhada, se realiza mediante parcerias público privada, concessões de serviços públicos.etc…

4 – Neoliberal: as articulações entre os agentes econômicos se processam diretamente através do mercado, havendo uma participação mínima do Estado.

A governança corporativa vem se firmando, enquanto  meio de lobby das corporações globais e de diminuição dos espaços democráticos. “As ações dos atores econômicos se realizam, na maioria das vezes, à revelia do planejamento estatal”, constatam as professoras. “Embora os instrumentos de regulação urbanística exerçam um papel de coibição de certos projetos de impacto, eles não têm sido suficientemente fortes para impedir que a força do mercado supere a fragilidade do  planejamento metropolitano e municipal. Em conseqüência, a acumulação urbana se fortalece e cresce vertiginosamente, notadamente nas metrópoles brasileira”.

Em que medida a ampliação desse modelo leva a uma perspectiva de privatização do Estado e a um correlato esvaziamento do papel do planejamento metropolitano ?  Quais as repercussões dessa possível retração dos espaços participativos sobre o projeto democrático-popular? Esses são alguns dos temas que a professora Norma Lacerda Gonçalves sugeriu para as pesquisas financiadas pela Capes. A iniciativa, disse ela, é louvável, pois basta uma análise dos anais e dos prêmios recentes da Anpur (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional) para se constatar que a academia tem praticamente ignorado a questão metropolitana, tratando a problemática urbana apenas sob os aspectos municipal e setorial.

Estatuto da Metrópole

O Estatuto da Metrópole, em análise na Camara Federal, foi proposto pelo deputado Walter Feldmann (PSDB-SP). O estatuto estabelece diretrizes para a execução da Política Nacional de Planejamento Regional Urbano e institui o Sistema Nacional de Planejamento e Informações Regionais Urbanas, sob coordenação do Ministério das Cidades.  

O objetivo é acelerar uma política que pense no desenvolvimento regional do ponto de vista territorial, mas também do ponto de vista econômico e social. E um sistema de informações estratégicas que periodicamente possa avaliar as evoluções, os movimentos, o processo migratório e o crescimento dessas regiões.

Na visão do deputado, o Estatuto da Metrópole complementará o Estatuto da Cidade, que tratou do desenvolvimento municipal, deixando de lado o impacto das questões do desenvolvimento regional urbano nas suas diferentes escalas e possibilidades de ocorrência. Não haveria intervenção da União no sistema de organização e gestão existente e mesmo a adesão ao banco de informações regionais seria voluntária.  

Pesquisa interdisciplinar e em rede

O seminário da Capes tratou, em seis painéis, das múltiplas dimensões de nossas metrópoles, como gestão ambiental, habitação, mobilidade,  acessibilidade, água, infraestrutura, violência, inclusão social e governança.  “Na visão unânime dos participantes, por sua complexidade, tais questões exigem um olhar interdisciplinar e devem ser abordadas de maneira transversal”, resumiu o sanitarista Arlindo Philippi Junior, um dos membros da comissão científica do evento

Outra conclusão é a necessidade de se incentivar trabalhos em rede envolvendo intercâmbios e circulação de pesquisadores nacionais. Para o professor Sérgio Adorno, da USP, isso é fundamental para termos uma visão nacional da segurança brasileira, por exemplo. Segundo ele, a relação entre cidade e violência deve ser pensada além da repreensão aos crimes. É essencial a educação de valores como cooperação, dignidade perante o outro e respeito às diferenças. “Hoje a segurança é pensada de forma que envolva qualidade de vida e não em enriquecimento da vida em sociedade. Se você não tem o mínimo de contato entre as classes será difícil construir uma cidade diferente”.

Para o presidente da Capes, o bioquimico Jorge Almeida Guimarães as conclusões do seminário poderiam subsidiar discussões na Rio +20 e até nas próximas eleições municipais.

Acesse a slides e áudios das apresentações do seminário em http://metropolizacao.capes.gov.br/    

(Texto publicado na revista “Projeto”, edição 389, de julho de 2012)

Júlio Moreno, jornalista, autor de “O futuro das cidades” (SENAC/SP)