Uma “vacina” para os males da Internet

Há mais coisas acontecendo no ciberespaço brasileiro que a espionagem de Obama. Foi o que se constatou no 1º. Encontro Nacional da Internet Society Brasil, realizado no sábado em São Paulo. Há preocupações e progressos e o Marco Civil da Internet – objeto do encontro – é bem a síntese de ambos.

O Marco estabelece os direitos dos usuários como privacidade, liberdade de expressão e neutralidade da rede, e obrigações para os provedores de acesso e ferramentas online. Iniciativa de 2009, “a Constituição da Internet brasileira” ganhou um empurrão da presidente Dilma após a denúncia da espionagem norte-americana. Ela pediu sua votação em regime de urgência, mas o projeto tem oposição da liderança do PMDB, em especial do deputado Eduardo Cunha, ex-presidente da Telerj, ferrenho defensor dos interesses das teles. Essas empresas controlam a infraestrutura de telecomunicações e desejam também controlar os fluxos da informação digital, o que vai contra o princípio da Internet ser uma rede aberta, sem pertencer a ninguém.

Na sexta-feira, contudo, a Anatel anunciou um acordo com as teles, o que permitiria que esse perigo se desfaça “a tempo do Brasil não passar vergonha, no primeiro semestre de 2014, quando deve sediar evento internacional para discutir os direitos dos usuários da rede”, como afirma o engenheiro Demi Getschko, diretor presidente do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (Nic.br), braço executivo do Comitê Gestor da Internet.

Segundo ele, o Marco será uma “vacina” para combater eventuais problemas no futuro. A espionagem de outros países é um deles, se bem que – ressalta Otavio Cunha, do setor de segurança das comunicações da Abin (Agência Brasileira de Inteligência – ela já existia antes da Internet. “A novidade é a profundidade e a granularidade”. Para combater esse perigo, a Abin desenvolveu um sistema de proteção de comunicações estratégicas que “acopla a criptografia aos usuários”. Algo como os “tokens” com algoritmos próprios utilizados pelos bancos.

Quanto aos usuários comuns, pessoas físicas ou corporações, há muito o que se preocupar:

1-A proteção de dados pessoais é assunto para vigília permanente, segundo o advogado Vitor Hugo Freitas, diretor da ISOC.  É preciso que se estabeleça uma forte relação de confiança entre usuário e fornecedor. Nesse caso, a aproximação física ajuda, diz o engenheiro Galeno Garbe lembrando que a popularização da Internet no Brasil tem sido incentivada por pequenos provedores que implantam anéis de fibra ótica em cidades ou bairros de até 5 mil habitantes.   O ideal, porém, seria que fossem auditados.

2- O encontro da ISOC mostrou ainda que uso da computação nas nuvens igualmente não é imune a riscos. Não se deve fechar um contrato, sem que o provedor do serviço seja transparente em relação à proteção que oferece.

3- O compartilhamento de sinal wifi – pratica de mais de 7 milhões de brasileiros, segundo pesquisa recente – não é um crime, mas se o seu vizinho é pedófilo, por exemplo, você pode ter dor de cabeça.

Um progresso importante ocorrido este ano foi a fixação definitiva da regra para as Prefeituras implementarem as chamadas “cidades digitais”, políticas públicas de acesso gratuito à Internet – não restrito às praças, como São Paulo está fazendo –  e governo eletrônico. Por incrível que pareça, apesar de se falar tanto em inclusão digital, foram precisos cinco anos de debate a respeito. Só que para a universalização do acesso é preciso ainda autorizar a construção de redes de fibra ótica comunitárias, diz Marcelo Saldanha, do Instituto Bem Estar Brasil.   Tais redes, livres da esfera pública, seriam geridas pela população através de ONGs, associações de moradores e outras entidades sem fins lucrativos.

Para a advogada Flávia Lefèvre Guimarães, da associação de consumidores Proteste, o Ministério das Comunicações e a Anatel têm negligenciado no atendimento à demanda da rede de alta capacidade, desrespeitando legislação de 2010 que fixou metas para banda larga nas escolas, oferta de infraestrutura em localidades que não despertam interesse econômico das empresas e atendimento às zonas rurais e periferia dos grandes centros.

As operadoras de telecomunicações focam na oferta de banda larga móvel, mas o Nic.br e a Telebrás enfatizam que o investimento na rede fixa é fundamental para o bom desempenho do sistema, em especial nas áreas com maior concentração populacional, pois há aplicações que só o móvel não suporta.   A Proteste apoia a campanha “Banda Larga é um Direito seu”, que defende a inclusão da banda larga no “regime público”, partindo da premissa que assim a infraestrutura instalada estará submetida a regras efetivas de compartilhamento e isonomia de tarifas.

A boa notícia é que o consumidor ganhou mais um fórum para defender sua opinião: a reestruturação dos Conselhos de Usuários das concessionárias de telefonia, com novas atribuições e direitos. As eleições ocorrerão em abril e podem concorrer indivíduos e entidades.

Criada em 1992, com sede nos Estados Unidos, a Internet Society é uma associação internacional sem fins lucrativos que visa promover o desenvolvimento de padrões da Internet e fomentar iniciativas educacionais e políticas públicas ligadas à rede mundial de computadores. Atua em mais de 130 países. Foi criada pelos pioneiros da rede Vint Cerf (considerado um dos “pais da Internet”), Bob Kahn e Lyman Chapin. O capítulo brasileiro é presidido pelo engenheiro Carlos Alberto Afonso.

Júlio Moreno

 (Publicado no “Diário do Comércio”, de São Paulo, em 10 de dezembro de 2013)

 

#vem pra calçada

Mais citada do que ouvida, a urbanista norte-americana Jane Jacobs já dizia há quase cinco décadas que , sob a aparente desordem da cidade, a segurança das ruas e a liberdade urbana  dependem muito do uso das calçadas.  “Embora seja vida, não arte”, ela fantasiava ver no vai-e-vem dos pedestres uma intricado balé no qual dançamos como indivíduos e em grupo, reforçando-se uns aos outros e compondo um todo ordenado. “O balé da calçada a boa cidade nunca se repete de um lugar a outro, e em todo lugar está sempre repleto de novas improvisações”.

Pois bem, em São Paulo fala-se muito hoje em mobilidade e acessibilidade urbana e mais uma vez as palavras de Jane Jabocs são esquecidas. Discute-se os impactos das faixas/corredores exclusivos para ônibus, a construção de mais linhas de metrô, o pedágio urbano para carros, mais pistas para ciclistas e outras ideias concentradas apenas nos meios de transporte. E o espaço dos pedestres ?

Há poucas semanas, convidado para participar de um seminário sobre mobilidade urbana promovido pela “Folha de S. Paulo”, o arquiteto Márcio Kogan tinha 10 minutos disponíveis para sua palestra. Começou pedindo licença para apresentar algumas fotos. E foi mostrando imagens de calçadas com faixas de piso tátil para permitir a acessibilidade aos cegos.  Em uma das fotos, a faixa terminava numa parede, em outra em um poste, em outra contornava um canteiro e havia mais de um exemplo de pisos com bueiros no meio. O arquiteto não gastou um minuto e deu por encerrada ali sua participação. “Diante de uma vergonha dessas, não há mais o que se falar”. Um gesto minimalista de um técnico para marcar um protesto cidadão sem tamanho.

Certa vez questionado sobre os shoppings que proliferam pelas cidades, o urbanista e ex-prefeito de Bogotá Enrique Penalosa, surpreendeu o interlocutor com sua resposta. Ao invés de ser mais um a criticar os centros de compra – aquela coisa de estufas, etc. e tal – Penalosa foi assertivo: o problema não é o shopping, mas a cidade. “As pessoas vão ao shopping não porque lá encontram estacionamento fácil, mas principalmente porque podem caminhar por locais tranquilos, com pisos bem cuidados.  As cidades têm muito a aprender com os shoppings”.  O comércio da Oscar Freire aprendeu.

Uma em cada cinco pessoas internadas no HC por causa de quedas sofreram o acidente em calçadas com buracos,  “pedras portuguesas” soltas ou placas escorregadias. Além do inestimável sofrimento das vítimas, isso significa também um custo social enorme, se somadas as contas hospitalares, os prejuízos dos dias improdutivos e outros. Justiça se faça. O descaso é histórico e não se restringe a São Paulo. Que o diga a atriz Beatriz Segal, de 87 anos,  que vive aqui e foi tropeçar numa calçada da zona sul do Rio. Bateu o rosto, machucou-se e ficou com o olho direito roxo. “A calçada estava esburacada. Foi um tombo feio”. E olha que ela caminhava na porta de um concorrido teatro.

Nossa cidade tem, segundo a Prefeitura, 35 milhões de metros lineares de calçadas e a responsabilidade de sua manutenção é dos proprietários dos imóveis lindeiros. Há um projeto na Camara Municipal, do vereador Andrea Matarazzo (PSDB),  propondo reverter a situação. A propósito, enquanto os proprietários de imóveis estão sujeitos a multas, qual é a punição para o poder público e as concessionárias ?   Qual foi a última vez que você ouviu falar em alargamento de alguma delas ?  O que ocorre, muitas vezes, é sua diminuição para ampliação do leito carroçável. Postes espremem os pedestres contra paredes. A instalação de  lixeiras, bancas de jornal e outros equipamentos é feita de forma descoordenada e quase nunca respeita os melhores caminhos para os pedestres.

Nada contra que as mesas de bares ocupem as calçadas (a Prefeitura Municipal lucra com isso, sabia ?) desde que a medida não signifique sua privatização, algo – ao que parece – irreversível no caso dos ambulantes (que nem pagam nada para o Município). E o que dizer da abertura de baias para entradas de veículos em edifícios de luxo? Repare em seu bairro: a iluminação pública é voltada para as ruas ou para os passeios públicos ? Como estão as calçadas ao redor das praças que você conhece ? São padronizadas, garantem a circulação segura de pessoas com mobilidade reduzida, como exige a legislação ? Aliás, qual é mesmo o padrão atual, tanto que muda ?

É urgente resgatarmos o “balé da calçada”.

Júlio Moreno

O patrimônio não é só histórico, é também estratégico

Vale a pena ficar de olho na revisão do Plano Diretor Estratégico de São Paulo cujo debate recém começou.

Tenho particular esperança de que haverá maior participação popular desta vez, ao contrário da revisão de 2007, uma das causas que levou o desatualizado plano de 2002 a permanecer em vigência até hoje, do que resultaram abusos do setor imobiliário, o agravamento da mobilidade urbana e poucas ações sustentáveis.

Uma das dimensões da sustentabilidade é a cultural. A cidade não é só onde moramos, trabalhamos e estudamos. Não é só um amontoado de gente. A cidade é essencialmente um organismo social em mutação constante. Cada qual com um DNA único. Essa identidade é dada pela cultura local. Ela precisa ser forte, para não deixar que as mutações dilacerem a cidade. Para ser forte, a cultura local precisa unir, não segregar. Vale dizer, respeitar a diversidade de todas as raízes da comunidade.

A preservação dos bens culturais faz parte desse contexto. São edificações, paisagens, bens móveis e sítios arqueológicos que guardam nossa memória coletiva. Sem eles, sofreríamos de uma “labirintite urbana”, digamos assim. Não conseguiríamos nos equilibrar, andariamos pelas ruas com tonturas, com medo do inesperado. O patrimônio cultural nos acalma, nos faz sentir em casa fora de casa. Apesar dessa importância, em São Paulo os bens culturais têm sido tratados de uma forma individualizada, como fenômenos isolados do restante do tecido das cidades. Células cancerígenas que precisam ficar isoladas.

Hoje o tombamento de um prédio representa praticamente o confisco de um bem privado em benefício do interesse coletivo. O Plano Diretor em gestação na Capital pode mudar esse quadro, dando uma dimensão urbanística aos bens históricos, reconhecendo-os como parte da cidade viva, dos vasos que levam sangue para o coração da urbe bater. E assim sendo, eles teriam não apenas um papel social importante a cumprir. Também seriam economicamente atraentes para a iniciativa privada, seja o setor imobiliário, o comércio ou a área de serviços. Ou seja, os prédios tombados poderiam ter outros usos que não apenas museus ou centros culturais. Com a perda de identidade que veio da globalização, a tendência das cidades contemporâneas é de valorizar a memória e descobrir que o patrimônio é um ativo, gera valor agregado, diz a arquiteta Nadia Somekh, nova diretoria do Departamento de Patrimônio Histórico (DPH) da Capital e presidente do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio (Compresp). Ou seja, os prédios tombados poderiam ter outros usos que não apenas museus ou centros culturais.

Incorporando o patrimônio histórico na estratégia de crescimento da cidade, o novo Plano Diretor paulistano poderá enfim ajudar a manter a pulsação dos locais que são afetivamente caros aos moradores de uma das maiores cidades do planeta.

Júlio Moreno

 

 

Avenida de idéias, praça de afetos

De campanha em campanha, os candidatos a cargos executivos incrementam  e diversificam as prioridades de seus planos de governo. Há 20, 30 anos, questões básicas como educação e  saúde somadas com obras viárias, asfalto e iluminação pública bastavam para influenciar o eleitorado. Depois vieram as preocupações com a criação de trabalho,  a construção de moradias populares e o meio ambiente. Hoje, mobilidade, sustentabilidade e segurança fazem parte dos discursos de todos.

Esses avanços ocorrem, em geral, muito mais por pressão da sociedade do que por idéias vanguardistas dos políticos. Menos mal, pois isso me deixa a vontade para questionar os candidatos a prefeito de Mogi das Cruzes se eles já ouviram falar da “economia criativa” e se ela faz parte de seus planos. 

O conceito é novo, há diferentes definições. Gosto da que ouvi da economista Lidia Goldenstein. Trata-se do conjunto de setores ligados à criatividade e às novas tecnologias que dão, por assim dizer, identidade à Sociedade do Conhecimento. São setores fundamentais para criar diferenciais e competividade para cidades, regiões e países.  

Os ingleses listaram 13 setores, tais como design, arquitetura, software, museus e mesmo esportes. No Brasil, há uma tendência a identificá-la simplesmente com ações culturais, como pensa o governo federal. É pouco. “É fundamental inserir a economia criativa dentro de uma visão de estratégia de desenvolvimento, não limitar à politica cultural. A “economia cultural” está dentro, mas a economia criativa é mais do que isto. Da mesma forma que ela é mais ampla que a “economia solidária”. É uma proposta de estratégia de desenvolvimento de setores lideres na geração de empregos, exportação e competividade”, diz a economista.

As grandes estruturas industriais, que diferenciavam as cidades e suas riquezas, hoje tendem a perder importância, na medida em que existe um  grande fluxo migratório da atividade industrial para locais onde a mão de obra é mais barata. São Paulo já vive isto. Mogi corre perigo.  “Os países e cidades tem que ter um plano de reação a essa tendência, que gera desemprego e situações perigosas do ponto de vista social. A economia criativa faz parte desse plano, o que não significa abandonar o setor manufatureiro. Ao contrário, sem economia criativa é que a industria perde força. Se não é possível mais competir no preço, é preciso criar diferenciais para os produtos como design, logística de entrega e marketing”.

Aplicada ao espaço urbano, a economia criativa gerou um novo conceito, o de “cidade criativa”, que outro economista, o português Carlos Martins, assim define: “uma cidade criativa é uma cidade que se faz de idéias e afetos”. 

E o que poderia ser feito em Mogi ? O incremento do turismo na cidade por conta da Festa do Divino, mas não apenas nos dias de sua realização, é um exemplo óbvio.  Tirar de vez do papel o Museu do Divino – único no País – seria um bom começo. Bilbao, na Espanha, compensou a desindustrialização com a construção de um ícone, o Museu Guggenheim, que lhe deu projeção urbanística e econômica mundial.

O apoio a setores com maior vocação para a criatividade agregaria novos valores ao PIB mogiano. A Prefeitura – em parceria com o Sebrae, as universidades e outras instituições – poderia criar “incubadoras” de empresas que lidam com produção audiovisual, Internet, animação, design, games, softwares e publicidade. O governo federal lançou um programa de apoio à indústria de software que prevê R$ 40 milhões para incentivo a “start-ups” e outros R$ 431 milhões a fundo perdido na criação de uma cadeia de fornecimento de softwares em torno das 15 áreas mais dinâmicas da economia. Embarquemos nele. O programa prevê a criação de 900 mil empregos em dez anos e dobrar para R$ 200 bilhões o faturamento de um setor composto 90% de micro e pequenas empresas. Muitas delas instaladas no Porto Digital do Recife que possui um centro de apoio ao empreendedorismo com escritório avançado em São Paulo para atrair talentos de fora. De quebra todo uma área histórica da cidade, a zona portuária, foi revitalizada.

Que tal, então, promovermos uma “feira de talentos” anual para os jovens brasileiros que apresentarem projetos criativos, úteis e com potencial de mercado ?  Os prêmios seriam incentivos para se estabelecerem em um polo de inovação e tecnologia a ser criado em Mogi.  

Uma Mogi criativa exigiria uma avenida por onde trafeguem suas idéias, ou seja, uma infraestrutura de banda larga para acesso fácil à Internet.

“Uma cidade, é claro, envolve muito mais do que as relações econômicas que nela se desenrolam”, lembra a administradora e doutora em urbanismo Ana Carla Fonseca. “ Unem-se a elas as relações sociais, a cultura local, os hábitos e atitudes da população, aquelas peculiaridades que fazem que um espaço seja tão diferente de outro e que dão alma a uma cidade”.   

Uma Mogi criativa promoveria nas escolas atividades para despertar o espírito inovador da garotada a partir de histórias reais contadas por gerações mais experientes. Cada uma seria uma espécie de praça de afetos.

(Publicado em “O Diário de Mogi”, de Mogi das Cruzes, em agosto de 2012)

                                                                                                                       Júlio Moreno

Como dominar as metrópoles ?

Exatos 40 anos depois do então prefeito paulistano Figueiredo Ferraz surpreender o Brasil com a frase “São Paulo precisa parar”, o gigantismo e a governança de nossas metrópoles volta à cena. Em abril, a Camara Federal instalou uma comissão especial para analisar o PL 3460/04 que objetiva criar o “Estatuto da Metrópole”. Em maio, a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), do MEC, promoveu o Seminário Internacional “A Metropolitação Brasileira e os Desafios da Gestão Urbana”, para orientar  futuros editais de programas de pós-graduação que fomentem a produção de conhecimento e a formação de recursos humanos qualificados para a temática. 

A emblemática frase de Figueiredo Ferraz foi um ousado contraponto aos ufanistas “São Paulo não pode parar”, lema de Adhemar de Barros, ou  “São Paulo, a cidade que mais cresce no mundo”, slogan do IV Centenário propagado nos cartazes dos bondes da Light. Um choque pois só se falava no “milagre econômico” promovido pelo regime militar. O que parecia ser uma ofensa revelou-se uma advertência. E séria.    

A capital tinha na ocasião 6 milhões de habitantes e a mancha urbana de 36 municípios ao seu redor cerca de 8,2 milhões. Em 2010, a cidade somava 10,6 milhões de  habitantes e sua  região metropolitana 19,7 milhões. O governo paulista já não fala mais apenas em Grande São Paulo, mas sim na “macrometrópole paulista”, resultante da conurbação da região metropolitana da Capital com a Baixada Santista e a área metropolitana de Campinas, somando 25 milhões de habitantes. O número cresce se forem agregadas as regiões metropolitanas do Vale do Paraiba e  do Litoral Norte, recém criadas, assim como as chamadas “aglomerações urbanas” de Jundiaí e Sorocaba.

Confusões e tensões  

O IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada)  relaciona 37 “regiões metropolitanas”, definidas por leis estaduais e três regiões integradas de desenvolvimento econômico (Rides), delimitadas por lei federal. Já pelos critérios do instituto em rede Observatório das Metrópoles, o Brasil possui verdadeiramente 15 “espaços metropolitanos” (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Brasília, Curitiba, Salvador , Recife, Fortaleza, Campinas, Manaus, Vitória, Goiania, Belém e Florianópolis) Eles concentram  36,3% da população brasileira e 62% da capacidade tecnológica do país.

A confusão resulta de dois fatores. Um deles é a falta de definição do conceito de metrópole contemporânea, no contexto de uma “modernidade líquida”, segundo a arquiteta Nadia Somekh, professora da Universidade Mackenzie de São Paulo e representante brasileira na UIA (União Internacional de Arquitetos). Devemos falar em “regiões metropolitanas”, “cidades-região”, “megacidade”, “metápole” ou “megalópole” ?  “Questiona-se mesmo se é possível falar em cidade contemporânea quando ainda se identificam enormes desigualdade sociais na macrometrópole”. Qualquer que seja a denominação, nossas regiões metropolitanas, diz ela, “pedem essa chancela para disputar recursos, não para resolver as questões próprias da organização metropolitana”.

Outra questão é a governança. Nosso primeiro sistema de regiões metropolitanas foi criado por decreto federal, em 1973, em plena ditadura. Os Estados foram incentivados a formular  seus próprios modelos de gestão metropolitana. A Constituição de 1988 mexeu no quadro, ao conferir status de ente federativo aos municípios. Com isso, houve um reforço da autonomia dos municípios na gestão e regulamentação do uso do solo. O poder dos Estados ficou restrito à definição dos aglomerados metropolitanos de seus territórios.  E à  União coube as  diretrizes de desenvolvimento urbano e a elaboração de planos regionais.

O novo arcabouço tem muitas falhas. Uma delas, segundo o Observatório das Metrópoles, é a ausência de critérios e estratégicas para que os Estados definam a condição metropolitana, o que resultou “na constituição de regiões metropolitanas extremamente heterogêneas quanto ao grau de integração dos municípios ao fenômeno metropolitano”. Houve até casos de criação e posterior desmanche de frágeis regiões metropolitanas. Outro problema foi a falta de regulação sobre as funções públicas de interesse comum, o que dificulta uma ação das autoridades  para coordenar soluções para problemas como a mobilidade, os recursos hídricos e o destino dos resíduos sólidos, tipicamente metropolitanos.

Segundo o IPEA, armou-se um jogo de tensões entre descentralização e federalismo, com problemas de coordenação vertical e horizontal para colaboração entre os níveis de governo.  Cada prefeito tem o direito legal de assumir um comportamento autárquico. E o pouco de política urbana que existe é a montagem de políticas setoriais não integradas, algo bastante criticado no seminário da Capes.

“Essa histórica ausência de articulação entre políticas setoriais impede uma alavancagem do Estado sobre o mercado imobiliário e gera um calendoscópio de planos diretores desconectados na escala regional-metropolitana”, segundo o pesquisador Jeroen Klink, da Universidade Federal do ABC. “O desmonte das estruturas de planejamento metropolitano, o revigoramento do planejamento municipal e a fragmentação do espaço metropolitano redirecionaram os estudos sobre a metrópole. Estes passaram a privilegiar temas setoriais e/ou análises sobre porções do espaço metropolitano”, diz a professora Norma Lacerda Gonçalves, da Universidade Federal do Pernambuco

 “O Ministério das Cidades tem uma visão municipalista. As regiões metropolitanas são tratadas de acordo com a visão do governo federal dos anos 70. Embora no governo Lula o PAC tenha sido implantado, essa política não foi vinculada a uma política metropolitana. Uma política de desenvolvimento que não está sendo formulada ancorada no território.  Na França, a metrópole passou a ser uma questão nacional”, diz Nadia Somekh.     

Procura-se um modelo

“Estamos diante de um paradoxo. As cidades-regiões, tradicionais locus do desenvolvimento, hoje representam também arenas estratégicas no processo de desenvolvimento e de reestruturação produtiva, mas existe um vácuo institucional quanto ao planejamento e a gestão destes territórios”, sintetiza o  Jeroen Klink.

Não existe, nem provavelmente existirá, um modelo único organizacional-gerencial para tratar da ação coletiva em áreas metropolitanas. Uma alternativa  radical é a constituição de uma região autônoma, um novo ente federativo, por meio de emenda constitucional, hipótese que a senadora Marta Suplicy (PT-SP) chegou a aventar no seminário “Brasil Metropolitano”  que ela promoveu em setembro de 2011.  

No Canadá, discute-se a fusão de cidades, a formação forçada de megacidade, para diminuir os aspectos negativos da fragmentação político-administrativa.  Vancouver, porém, tem um modelo institucional assentado na cooperação voluntária das municipalidades integrantes, as quais interagem por meio de uma agência de poderes circunscritos e voltada para a prestação de serviços básicos de natureza metropolitana, conforme o economista Ricardo Brinco, do Observatório das Metrópoles.  

Existem arranjos flexíveis e pragmáticos, como os pactos setoriais por projetos e programas como a revitalização da região do Ruhr, na Alemanha, que consumiu toda uma década.  Foi coordenada por uma agência privada, mas com controle acionário do governo federal.

Na Espanha, o  arranjo na região de Madri, privilegiando fortemente a capital,  tem sofrido crescente contestação dos municípios menores, por falta de uma maior participação da sociedade. “Essa discussão de modelos é delicada, temos que caminhar com ponderação, sem nos esquecermos da democracia e da cidadania”, lembrou a professora Johanna Looye,  da Universidade de Cincinnati (Estados Unidos), participante do seminário da Capes.

No Brasil, os arranjos institucionais cooperativos foram facilitados pela lei de  consórcios públicos intermunicipais de 2005, regulamentada em 2007.  Só que a lei não garante, por si, os recursos necessários para os investimentos regionais. E as iniciativas existentes são poucas.

Um caso pioneiro foi o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, criado há 20 anos. A Câmara Regional reúne, além dos 7 prefeitos, a sociedade civil, representada por empresários, sindicatos e governo estadual. São muitos os resultados concretos: investimentos regionais em saúde, macrodrenagem,e programas de inclusão social; a criação do campus da Unifesp em Diadema e Universidade Federal do ABC, além da expansão do pólo petroquímico.

A região metropolitana de Belo Horizonte adotou uma gestão  compartilhada, por intermédio da Agencia RMBH, criada pelo governo estadual como uma “autarquia territorial”. A Agência cumpre as decisões de um Conselho Deliberativo Metropolitano, cujo responsável é escolhido pelo governador numa lista tríplice elaborada pelos prefeitos da região. Uma assembléia realizada a cada dois anos elege dois representantes dos cidadãos metropolitanos para o Conselho. O foco inicial da Agência RMBH é o ordenamento territorial, mas em breve deverá cuidar também da regulação dos transportes metropolitanos.

O governo do Estado de São Paulo criou este ano uma Agência de Desenvolvimento, o Fundo Metropolitano e o Conselho de Desenvolvimento integrado por prefeitos, secretários estaduais, representes da Assembléia Legislativa, mais um Conselho Consultivo com participações da sociedade civil e de vereadores.

Questão política

“A governança metropolitana é muito mais uma questão política do que uma questão de modelo”, diz a professora Norma Lacerda Gonçalves. “Reformas institucionais que visam transformar a organização do sistema de atores com o intuito de estabelecer ou reforçar um poder metropolitano pode favorecer a governança metropolitana. Mas, se este sistema político é fortemente concentrado ou fortemente disperso, torna-se um elemento desfavorável à governança”.

Em estudo realizado em conjunto com a pesquisadora Suely Leal, a professora da UFPE lista quatro tipos possíveis de governança metropolitana:

1 – Clássico ou tradicional: a articulação dos atores econômicos com o Estado se dá por meio das elites políticas, mantendo padrões de governança na forma patrimonialista e clientelista.

2 – Democrático popular: a articulação dos atores econômicos e sociais ocorre mediante  mecanismos institucionais  democráticos dos quais participam,  além dos segmentos populares, as elites modernas (capital imobiliário, comercial e de serviços) e o setor público (dirigentes e quadros técnicos).

3 – Corporativo: a associação entre as frações das elites modernas e o Estado, nas formas de gestão compartilhada, se realiza mediante parcerias público privada, concessões de serviços públicos.etc…

4 – Neoliberal: as articulações entre os agentes econômicos se processam diretamente através do mercado, havendo uma participação mínima do Estado.

A governança corporativa vem se firmando, enquanto  meio de lobby das corporações globais e de diminuição dos espaços democráticos. “As ações dos atores econômicos se realizam, na maioria das vezes, à revelia do planejamento estatal”, constatam as professoras. “Embora os instrumentos de regulação urbanística exerçam um papel de coibição de certos projetos de impacto, eles não têm sido suficientemente fortes para impedir que a força do mercado supere a fragilidade do  planejamento metropolitano e municipal. Em conseqüência, a acumulação urbana se fortalece e cresce vertiginosamente, notadamente nas metrópoles brasileira”.

Em que medida a ampliação desse modelo leva a uma perspectiva de privatização do Estado e a um correlato esvaziamento do papel do planejamento metropolitano ?  Quais as repercussões dessa possível retração dos espaços participativos sobre o projeto democrático-popular? Esses são alguns dos temas que a professora Norma Lacerda Gonçalves sugeriu para as pesquisas financiadas pela Capes. A iniciativa, disse ela, é louvável, pois basta uma análise dos anais e dos prêmios recentes da Anpur (Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional) para se constatar que a academia tem praticamente ignorado a questão metropolitana, tratando a problemática urbana apenas sob os aspectos municipal e setorial.

Estatuto da Metrópole

O Estatuto da Metrópole, em análise na Camara Federal, foi proposto pelo deputado Walter Feldmann (PSDB-SP). O estatuto estabelece diretrizes para a execução da Política Nacional de Planejamento Regional Urbano e institui o Sistema Nacional de Planejamento e Informações Regionais Urbanas, sob coordenação do Ministério das Cidades.  

O objetivo é acelerar uma política que pense no desenvolvimento regional do ponto de vista territorial, mas também do ponto de vista econômico e social. E um sistema de informações estratégicas que periodicamente possa avaliar as evoluções, os movimentos, o processo migratório e o crescimento dessas regiões.

Na visão do deputado, o Estatuto da Metrópole complementará o Estatuto da Cidade, que tratou do desenvolvimento municipal, deixando de lado o impacto das questões do desenvolvimento regional urbano nas suas diferentes escalas e possibilidades de ocorrência. Não haveria intervenção da União no sistema de organização e gestão existente e mesmo a adesão ao banco de informações regionais seria voluntária.  

Pesquisa interdisciplinar e em rede

O seminário da Capes tratou, em seis painéis, das múltiplas dimensões de nossas metrópoles, como gestão ambiental, habitação, mobilidade,  acessibilidade, água, infraestrutura, violência, inclusão social e governança.  “Na visão unânime dos participantes, por sua complexidade, tais questões exigem um olhar interdisciplinar e devem ser abordadas de maneira transversal”, resumiu o sanitarista Arlindo Philippi Junior, um dos membros da comissão científica do evento

Outra conclusão é a necessidade de se incentivar trabalhos em rede envolvendo intercâmbios e circulação de pesquisadores nacionais. Para o professor Sérgio Adorno, da USP, isso é fundamental para termos uma visão nacional da segurança brasileira, por exemplo. Segundo ele, a relação entre cidade e violência deve ser pensada além da repreensão aos crimes. É essencial a educação de valores como cooperação, dignidade perante o outro e respeito às diferenças. “Hoje a segurança é pensada de forma que envolva qualidade de vida e não em enriquecimento da vida em sociedade. Se você não tem o mínimo de contato entre as classes será difícil construir uma cidade diferente”.

Para o presidente da Capes, o bioquimico Jorge Almeida Guimarães as conclusões do seminário poderiam subsidiar discussões na Rio +20 e até nas próximas eleições municipais.

Acesse a slides e áudios das apresentações do seminário em http://metropolizacao.capes.gov.br/    

(Texto publicado na revista “Projeto”, edição 389, de julho de 2012)

Júlio Moreno, jornalista, autor de “O futuro das cidades” (SENAC/SP) 

As lições de Ariella

No momento de tantas mudanças e incertezas, o que fazer com as “cidades com depressão” ou áreas urbanas em crise ? A arquiteta-urbanista  Ariella Masboungi, do Ministério de Urbanismo e Desenvolvimento Sustentável da França, tem a resposta na ponta da língua: elas devem se reinventar. “Essa é a ocasião em que o planejamento urbano é uma “mensagem de esperança” para garantir uma sustentabilidade durável para nossa sociedade”.

Ariella esteve em São Paulo em março de 2012 para participar do seminário “Diálogos Brasil-França  2012: Construir a Metrópole Contemporânea”, promovido pela Universidade Mackenzie. “Não é o país que faz projetos urbanos, são as cidades, que devem ser criativas, ambiciosas, corajosas na tarefa de tomar o destino em suas mãos”.

O conceito de uma operação urbana, diz ela, não pode ser reduzido à concepção do desenho de um território. Ele é mais amplo, pois abraça a visão da cidade que se deseja, as estratégias para se chegar lá e a forma espacial que traduza isso. “O projeto urbano é um  jogo entre uma estratégia urbana e sócio-econômica e as operações necessárias para transformar intenção em realidade”.  E isso leva muito tempo, “em geral 30 anos”, o que requer um compromisso forte e de longo prazo de suas administrações.

Cada cidade tem sua individualidade, as soluções para seus problemas são diferentes, mas  é útil conhecer circunstâncias e métodos. Ariella Masboungi resumiu em “10 lições” os pontos que mudaram a vida das cidades que não tiveram “medo do futuro” :

1 – Enfrentar as catástrofes:  cidades como Manchester, Bilbao e Beirute, por terem sofrido terríveis perdas econômicas e problemas sociais, viviam de “costas para a parede”, mas resolveram empreender projetos ambiciosos e se deram bem.

2 – A renovação urbana é a alavanca para a revitalização económica e social. “Good design leads to good economy”. Bilbao, “a nova Meca do planejamento urbano”, demonstrou a força de um projeto  que apostou na cultura em prol de uma visão estratégica de seu território com a finalidade de inventar uma nova economia para a região.

3 – O projeto urbanístico deve ser apoiado sobre a geografia do lugar e ser fácil de descrever. “Geografia é a palavra de ordem do projeto urbano contemporâneo face à perda de referências e convenções. É necessário dar especial atenção à água e natureza, como vimos no projeto de recuperação urbana dos terraços paisagísticos de Nanterre.” 

4 – É preciso casar pragmatismo com a ambição de criar herança. Aceitar o mundo tal como é: o mercado, estilos de vida, o modelo de convivência, mas igualmente preocupado com a identidade. É possível criar patrimônio. É um dever.

5 – O projeto urbanístico é mais fundamental que arquitetura, embora a qualidade arquitetónica deva estar sempre presente. Ícones arquitetônicos podem servir como marketing urbano, prestar um enorme serviço a qualquer cidade, em especial quando têm suas imagens atreladas à reputação de arquitetos famosos. Só que eles não devem mascarar o urbanismo, ocultar a visão que deu origem a tudo e que deve permanecer. 

6 – A arquitetura deve cuidar também da  infraestrutura, do parque industrial e ainda da habitação. A moradia é a “carne” da cidade”, nas palavras da arquiteta. “A qualidade de uma cidade não se escreve só com maiúsculas, são as minúsculas que fabricam a estrutura do texto, a comunidade”.

7 – É preciso ousar, correr o risco do erro. Quanto mais o projeto urbano sai do papel, mais credibilidade ele ganha e novas ações são possíveis. Muitas vezes há riscos de impopularidade ou mesmo financeiro, mas isto faz parte da ousadia. Apenas as cidades que ousam, que se atrevem a grandes investimentos ou decisões corajosas, podem alcançar o sucesso.

8 – Cada cidade precisa “inventar” ferramentas próprias para a implementação de suas operações urbanas. Em geral, são parcerias público-privada e as operações são amplamente debatidas. Elas escapam aos mecanismos obscuros dos gabinetes administrativos e asseguram a tomada de decisões em conjunto com o setor privado.

9 – A parceria público-privada só dá certo quando se administra bem a parceria público-público, se viu no Emscher Park, para revitalização do Ruhr. Sem isto, fica difícil. Todos grandes projetos estão relacionados a homens excepcionais, figuras carismáticas, capazes de enfrentar inclusive os prefeitos, mas também de  mobilizar os outros. Homem consciente da ação, seu lema é o pragmatismo.

10 – Ninguém é profeta em seu País. Bilbao é, de fato,  pouco conhecido na Espanha por conta de seu projeto urbanístico. É o mesmo para Birmingham e  Genova, em seus respectivos países. Seus métodos e ferramentas raramente servem de inspiração para outras experiências. É preciso uma melhor difusão do conhecimento dos métodos exitosos e ousados.   

A experiência européia, concluir Ariella Masboungi, mostra que a luta contra a expansão urbana pode ser feita com ofertas comparáveis e atraentes na cidade consolidada. Desde que não se perca a noção da hetereogeneidade. 

                                                                                                             Júlio Moreno

(Publicado na revista “Projeto” , edição 387, de maio de 2012)

Memórias do casarão da Coronel

O casarão da Coronel Souza Franco, em Mogi das Cruzes,  sempre despertou a curiosidade dos que circulam pela rua. Mesmo tendo abrigado por muitos anos uma pensão, são relativamente poucos os mogianos que a conheceram por dentro. Eu fui um deles, se bem que guardo vaga lembrança disso, pois era um pirralho de dois, três anos. Minha mãe Geralda, contudo, tinha muitas recordações do casarão, exaustivamente repetidas nas conversas que eu e meus irmãos Valter Luis e Lúcia Helena tivemos com ela no ano passado, antes de seu falecimento.

O Valter, por sinal, nasceu no casarão em março de 1952. Papai José comprou a pensão no final dos anos 40, com o dinheiro da venda de um bar no Brás. Meu irmão José Carlos era de colo. Depois, eles se mudaram ao repassarem o negócio para meus avós maternos, Cecília e Júlio. Não passou muito tempo, voltaram, agora comigo, recém nascido. Ficamos, provavelmente, até 1953, quando meus avós venderam a pensão para dona Lucinda.  

A pensão servia almoço todos os dias, de segunda a sexta. Era, por assim dizer, o refeitório do SENAI, recebendo todos os dias  40 funcionários. Para atender a um pedido deles, nas quartas, o prato do dia era espinafre, comprava-se 20 maços para a turma. Outro grupo assíduo eram as professoras do Colégio Normal, que ficava ali pertinho. E havia ainda o  dr. Mello Freire do cartório que saudava com rima a visita de Eny , prima de minha mãe: “Menina bonita de Cachoeira Paulista”.

Por dia saiam umas 15 marmitas. Quem entregava era o filho do “Geraldo sapateiro”, garoto bonzinho mas que vez ou outra tirava uma lasquinha dos bifes dos clientes.  

O estabelecimento tinha também pensionistas residentes. Havia  o professor  Sinibaldi do SENAI, o João do Banco São Paulo, o Robertinho da gráfica e  o Arnaldo que se casou com a Pérola.    

O casarão, erguido com tijolos de barro, data dos anos 20. Desde sempre chamou a atenção com suas colunas neoclássicas, a escadaria de mármore branco (quanto sapólio para limpar !) e os recuos laterais e de frente. A porta tinha acabamento superior com “vidros de igreja”, como Eny descreve  os vidros coloridos. Os janelões tinham vidros grossos, daqueles que se passava jornal para brilhar. Seriam franceses.

Entrando, havia um quarto para cada lado, separados por um corredorzinho de labrilho hidráulico. Depois vinha a sala grande com paredes decoradas.  Ela tinha um piso de largas e grossas tábuas de madeira. De tanto se esforçar para, ajoelhada, lustrar aquele chão com cera de pasta,  minha mãe certa vez adoeceu.

Cruzando a sala, um corredor de piso de madeira levava a mais quatro quartos. Ai vinha a sala de refeições dos pensionistas, depois a copa onde a família comia e a cozinha de piso cimentado. “O fogão era uma beleza, com oito ou dez bocas, de tijolo, com uma chapa de ferro bonita”, contava mamãe. Mais aos fundos ficavam o único banheiro, uma dispensa e um quartinho. No quintal, um ranchinho.

Li no jornal que a construção, coberta por telhas de barro, tem 195 metros quadrados e o terreno 511. Já foi maior. Na lateral, onde hoje tem a sede do PR (antiga casa do prefeito Valdemar), havia um pomar com vistosas árvores. Ele era protegido da rua por um muro com grades de ferro fundido, “inglesas”, assim como a frente da casa, com belas palmeiras e um jardim de hortências. Todo espaço externo era o reino do Ceará, nosso cachorro.  

O nascimento de meu irmão Valter mexeu com a rotina do lugar. O parto, foi demorado. Assustou Zé Carlos, meu irmão mais velho, que chorava muito. “Leva essa criança para fora !”, gritou a certa altura, para meu pai,   a “madrinha” Cecília.

Na hora, os pensionistas escutavam pela Rádio Nacional a radionovela “O Direito de Nascer”, fenômeno de audiência que inspirou uma novela da TV Tupi. Quando eles ouviram o choro do recém chegado, aplaudiram bravamente.   

Em 2010, antes da Prefeitura desapropriar o casarão, minha mãe sonhava voltar a “entrar nela” antes que a derrubassem. O imóvel já estava em péssimo estado de conservação. Hoje, o casarão luta pelo direito de sobreviver.

                                                                                                      Texto de   Júlio Moreno 

Fotos do casarão hoje, na sequência, de Clarissa Ornellas, Andréia Tuca Pinheiro e Lúcia Helena de Oliveira Moreno.

A foto histórica é do álbum da familia. Foi tirada no jardim do casarão, em 1952, mostrando meu pai, José, comigo (à esquerda na foto) e meu irmão Valter Luis no colo. Em pé, na frente, meu irmão José Carlos.

(Crônica publicada em “O Diário de Mogi” de 18 de março de 2012)

Ai se eu te pego, Esfarrapado !

fevereiro 21, 2012 2 comentários

Segunda-feira de Carnaval. Depois de uma manhã chove-não chove, o sol estava de rachar a cabeça dos foliões concentrados na esquina das ruas Conselheiro Carrão e Luis Barreto, praticamente atrás da igreja da Achiropita. 

Tradição familiar

Eram mais de duas da tarde, o sujeito vestido de mulher, a senhora observando tudo sentada na cadeira de praia instalada no posto de gasolina, os meninos com tubos de espuma, as mães das menininhas fantasiadas de rosa e outras dezenas de pessoas estavam impaciente.

Posto estratégico

Afinal, vai começar ou não o desfile do Bloco Esfarrapado, o 65º. na história do bloco mais antigo da cidade ?

Em cima do trio-elétrico, um senhor sério atrasava tudo a cada agradecimento que fazia à ‘imprensa falada e escrita”, aos policiais, ao instituto de cabeleireiros da fulana, ao escritório de advocacia “que não poupou esforços em nos ajudar” e por ai adiante. 

O  apupo do povo se agigantou quando ele pediu, muito educadamente, que este ano não se repetissem as cenas de 2011, quando alguns terminaram a farra jogando ovos e farinha nos outros. Isso depõe contra quem faz, macula o espírito comunitário que deve prevalecer no bloco e viola a lei, ainda que sejam infrações de jovens. Foi o que ele disse, complementando: “Quem trouxe ovo e farinha, pode deixar ali na nossa sede que depois a gente entrega para quem precisa“.

Pronto, todos os recados dados, o bloco enfim começa a desfilar às duas e vinte da tarde.

A música é a maior barafunda. Começou com o hino do bloco, cujo verso inicial é “Bixiga é alegria… “, o resto não dá para ouvir direito. Segue com Taji Mahan, marchinhas tipo Me dá um dinheiro ai e tem até o Hino do Corinthians…

Vendedores de cerveja e refrigerantes empurram carrinhos entre os foliões. Atrás deles, catadoras de lata enchem sacos de lixo, daqueles pretos, enormes.

No final da Conselheiro Carrão, os foliões fazem a curva na Almirante Marques Leão, depois pegam a pequena rua Una, um contorno para a Cardeal Leme, por sua vez caminho para a subida da Manoel Dutra.

Senhoras que desfilam protegem-se do sol. Senhoras que não desfilam saem à janela.Um senhor de cabelos brancos chega, civicamente, a brandir a bandeira do Brasil !

Mães brincam com crianças vestidas de ciganas, diabinhos ou simplesmente colares nos pescoços.

Mães que não desfilam levam os filhos mais retraidos ou em carrinho de bebê para acómpanhar a brincadeira de perto.Olhares curiosos

  Um  marinheiro descansa, bebendo sua cervejinha, recostado num carro. “Vada a bordo, cazzo !”, grita um gaiato.

Uma loira (oxigenada ?) , popuzuda, do jeito que o Adriano gosta,  provoca os passantes com suas protuberâncias ressaltadas por um colan bem coladinho todo rosa. Desbocada, chamou de “favelados” uns garotos magrelas que iam de lá para cá, zanzando entre os foliões. Ah, se ela  soubesse o que falaram dela…

Cantineiros barrigudos não escondem a pança.

Um palhaço gordo, meio triste, posa para fotos.

Antigas moradoras admiram a coragem de um homenzarão que saiu vestido de mini-saia de lantejoulas amarela. Olhares e comentários discretos, à moda antiga, ainda que o espírito do bloco seja anárquico. (O que, aliás, não impediu a agremiação há poucos anos de tirar um CNPJ e inscrever o nome no INPI, coisa que os organizadores do passado não admitiriam jamais).

Na Manoel Dutra, o funcionário de um estacionamento dá uma boa ajuda, refrescando a todos com jatos d´agua de mangueira.

Braveza ?

Uma senhorinha assiste ao desfile da janela ao lado de um cão bravo.

Na travessia da rua Rui Barbosa, a principal do bairro, o bloco se divide em dois. Os motoristas não quiseram esperar, como se o bloco tivesse que respeitar sinal de trânsito numa segunda de Carnaval.  Deixa prá lá, não vamos perder a alegria por causa disso.

E o desfile prossegue pelo novelo das ruas Conselheiro Ramalho, Maria José, Humaitá e Major Diogo, com alta concentração de pequenas oficinas, habitações coletivas, quitandas e naturalmente instituto de beleza, que isto não falta em lugar nenhum. O que falta, isto sim, é aquela verve política que caracterizou o Esfarrapado por décadas, até que veio a ditadura e o enquadrou. Bem, deixemos também isto de lado que a farra continua nas ruas estreitas do Bixiga…

Dona Olimpia

Na Major Diogo, o bloco pára por alguns minutos diante da casa onde mora dona Olímpia, que por duas décadas foi responsável pela “corte” do antigo cordão carnavalesco da Vai-Vai, hoje tremenda escola de samba. Com 97 anos de idade, ela segue firme e viu tudo em pé do portão de sua casa.

A homenagem só não foi mais dignificante porque um homem  que “viajava” sobre o carro do trio-elétrico teve que pedir a palavra e apelar para que todos levassem aquilo na brincadeira pura, sem exageros. Alguém tinha pisado na bola, quebrando o espírito de “bloco de família” do Esfarrapado.

No final eram milhares

“Quem quer jogar farinha e ovo, que vá jogar no PAI e na MÃE !!!” – berrou. Nada que lembrasse as palavras proferidas educadamente por aquele senhor sério no início do desfile. Deu resultado:  até o final não aconteceu mais nenhum incidente do gênero.

O bloco passa depois diante da Casa da Yá-Yá e do Teatro Brasileiro de Comédia, pontos marcantes da história do bairro. E pega a Santo Antonio, rumo à 13 de Maio dos cafés boêmios.

Papai levou

A subida é feita caminhando, não mais balançando o corpo pra cá-prá lá. O calor continua forte. Tem gente exausta.

E às cinco e dez tudo acaba diante da igreja da Achiropita. Naturalmente com um pedido de benção à madona do bairro.

Quer dizer, acaba o desfile, mas o pula-pula continua, de volta na Conselheiro Carrão. Ai sim o trio elétrico fica livre para tocar alto e bom som “Ai, se eu te pego/ Ai se eu te pego… “.

A madona perdoa

Tudo bem, tudo bem, aquilo já não faz mais parte do Esfarrapado, como alertou a um fotógrafo estrangeiro – tinham vários durante o desfile – um marronzinho da CET.

                                    

                                           Texto e fotos de Júlio Moreno

                                                                               20/02/2012

 

 

Leia também:

Os Esfarrapados

(crônica de 02/03/11)

Dia de festa no Bixiga, o reino dos anônimos

fevereiro 7, 2012 1 comentário

O Bixiga, é inegável, perdeu há tempos a paisagem romântica  a la italiana, com as  nonas nas janelas, meninos jogando bola de couro nas ruas e o vendedor de queijos batendo de porta em porta. Hoje boa parte das casinhas ainda em pé abriga uma gente humilde, em geral migrante nordestino, que trabalha no centro. As cantinas sobrevivem, mas são poucas as autênticas, que não investiram em ampliações, em certos casos para ganhar na quantidade e não na qualidade.  Os teatros minguaram, o museu de memórias do bairro precisa de ajuda, a igreja Achiropita cerra portas fora dos horários de missa.

Inegável também que nem tudo está perdido, é certo.  A escola de samba Vai-Vai, na contramão, hoje tem um fã clube além das fronteiras paulistanas. A Padaria Basilicata, de 1914, “exporta” pão italiano para toda região metropolitana. Outra coisa que resiste é a atmosfera de uma comunidade de bem com a vida, ainda que seja uma vida dura.

No dia 25 de janeiro, quando São Paulo completou 458 anos, o bairro voltou a repetir, após quatro anos de jejum, a divertida festa do bolo de aniversário da cidade iniciada em 1997. Tudo bem, tudo bem: já não é a mesma farra de antes. No princípio, o bolo era uma junção de várias bolos retangulares, confeccionados pelos próprios moradores em suas casas e untados com o mesmo glacê para dar a impressão de um só. Unidos sobre mesas  eles tinham (ou acreditava-se que tinham) a extensão do número do aniversário da cidade.

Depois a coisa foi ficando cara e complicada, o bolo passou a ser feito em cozinha industrial, mas continuou provocando muita polêmica pela balburdia que acontecia no final do “parabéns para você…”. Todo mundo avançava e era um salve-se quem puder para garantir seu pedacinho. Parecia filme de pastelão. Coisa de envergonhar a cidade, diziam muitos. Isso contribuiu para o recesso e o retorno mais “civilizado” do evento. No 25 de janeiro de 2012, o bolo com o tamanho do aniversário da cidade ficou na imaginação. Os que foram ao Bixiga ganharam mini-bolos de pão-de-ló (de 300 gramas cada um), devidamente embalados, ofertados pelo Pastifício Renata, da cidade de Sumaré. Foram oito mil unidades.

Valter Taverna, autoproclamado primeiro-ministro da “República do Bixiga” ficou satisfeito. Ele herdou de Armando Puglisi a responsabilidade pelo bolo. Armandinho, já falecido, era despachante quando lhe dava na veneta de trabalhar. Foi o criador do hoje semi abandonado museu de memórias do bairro. Valter, cantineiro,  montou um centro de tradições mais ou menos semelhante. Enfim, apesar de amigos, eles não deixavam de disputar o galardão de depositário da história do Bixiga.  Na morte de um, o outro assumiu seu lugar. Merecidamente.

Armandinho costumava dizer que seu museu destinava-se a realçar a vida dos “varridos da história”, a gente anônima da cidade, não os grandalhões que tradicionalmente são os únicos lembrados nos museus oficiais.  Esse espaço de destaque para os anônimos o Bixiga preservou. No aniversário da cidade, logo após a festa do bolo, teve um concurso de sósias. Vieram Pelé, Ronaldinho Gaúcho, o Papa Bento XVI, o Madruga da TV e outros. Melhor dizendo, gente muito parecida com eles, moradores de diversos rincões paulistanos, que teve seus 15 minutos de fama posando para fotos ao lado de autoridades e curiosos.

A festa do aniversário da cidade foi na rua Barbosa, diante dos tapumes que há anos cobrem o prédio art decô do antigo Cine Rex, na esquina das ruas Rui Barbosa e Conselheiro Carrão. Esquina histórica, pois ali funcionou depois o Teatro Aquarius, onde foi encenado em 1969, logo após o AI-5, o musical Hair, que entre outros atores hoje famosos revelou a mocinha Sonia Braga. Mais tarde, como Teatro Zaccaro, serviu de set para Faustão colocar no ar seu programa “Perdidos na Noite”, que o revelou para a TV.

A cor azul dos tapumes não alivia a tristeza de quem vê aquelas “ruínas”. Mesmo assim, a festa tem que continuar e não apenas porque esse era o dia do aniversário da cidade. A um quarteirão e alguns metros dali,  num bar da rua 13 de Maio, em  frente à igreja Achiropita, comemorava-se os 75 anos do Tinin. Para quem não conhece, Tinin é um pintor de mãos firmes e  caprichosas, daqueles que antes da Lei da Cidade Limpa ganhavam seu honesto dinheirinho fazendo placas, letreiros e faixas para o comércio e o distinto público em geral.

À parte disso, Tinin  foi durante muitos anos o responsável pelo Livro de Ouro que arrecadava fundos botar na rua o Bloco Esfarrapado, o único sobrevivente dos blocos de sujos da cidade, que sai toda segunda-feira de carnaval. Outra criação, não por coincidência, de Armandinho e amigos, que do saco cheio do que não ter o que fazer na segunda de Carnaval de 1947, foram se reunir na porta do –  também não por coincidência – Cine Rex, ponto de encontro do bairro. Ali combinaram voltar para casa, vestirem-se da maneira que quisessem (Armandinho foi de camisola, outro de babado sobre paletó, um de ceroulas e gravata borboleta e assim por diante) e botaram a primeira versão do bloco na rua.

Por décadas, o Esfarrapado foi anárquico, sem presidente e verba oficial. Agora – mais um sinal de mudança – já tem até CNPJ, pois teve que oficializar sua existência perante as autoridades constituídas para poder um dia, quem sabe, receber alguma verba de patrocínio. Coisa, de fato, necessária, pois a época do Livro de Ouro já era. Outra medida profilática foi o registro do nome do bloco no INPI. Já viu isto ?

E chegando aos finalmentes, registre-se com o devido destaque que a festa do Tinin foi muito boa. Uma festa bem bixiquenta, onde se misturaram amigos da velha guarda “italiana”,  o baiano Pai de Santo Francisco (há 30 anos estabelecido na Almirante Marques Leão, conhecido pelas sacolas de alimento que distribui todo mês), o  mestrando em bioinformática Abdalla (brasiliense, ele estuda a translução de sinais da cana-de-açúcar, vale dizer, sua genética) , cabos eleitorais do bairro, advogados, ao menos um jornalista (eu) e um pessoal do som bem animado.  Um caldeirão de raças,  profissões e status social. O espelho de Sampa.

A comemoração teve início de manhã e foi até a noite. O bar era pequeno para acomodar os amigos do Tinin,  tiveram que botar mesas na rua e, junto ao meio-fio, o forno de carvão que defumava a todos  no nobre mister de grelhar as lingüiças ardidas servidas com pedaços de pão italiano. E cerveja, muita cerveja. Só faltou o bolo, mas isto pode ficar com a cidade.  Quanto mais ainda pão-de-ló embalado,  sem desmerecer, em absoluto a nova versãoda festa do bolo do Bixiga,  desde que o evento popular não perca a graça.

Pelas ruas de Çukurcuma

dezembro 18, 2011 2 comentários

Um filete de água barrenta margeia o meio-fio de um dos lados da rua. Vem da demolição de mais uma antiga casa de madeira sobre a calçada na parte alta da ladeira  Çukurcuma (isso mesmo, com cedilha na inicial),  chegando até o hamam, uma casa de banho turco cuja tabela de preços não indica ser grande coisa.

Lugar estranho para um passeio pela Istambul das mesquitas, dos palácios dos sultões e da panorâmica paisagem do Bósforo, o estreito que a divide em duas partes: uma na Europa, outra na Ásia. O turista, no entanto, tem interesse nisso mesmo, algo que não está no guias. Ou ainda não está.   

Meu desejo é vivenciar o universo urbano descrito nas obras do escritor Orhan Pamuk, Prêmio Nobel da Literatura de 2006. Estamos em pleno verão com 30 graus de temperatura e uma atmosfera especial criada por mais um Ramadã. Durante um mês inteiro, o muçulmano pratica o jejum desde que as vozes que ecoam das mesquitas anunciam o início das preces, no meio da madrugada, até elas serem ouvidas pela última vez no dia, no início da noite. Ai começam as confraternizações entre familiares e amigos, sem nada alcoólico para animar.   

A alegria dos turistas

Hospedado na região do glamouroso Pera Hotel, o preferido dos passageiros do lendário Orient Express, vou a pé ao meu destino. Basta pegar a Itiskal Cadessi rumo à praça Taksin. A Itiskal é hoje uma rua de pedestres, com grande concentração de lojas de marcas internacionais, onde trafega deliciosamente um bondinho vermelho. A Taksin é a praça principal de Istambul, local das manifestações políticas e culturais mais importantes.

Na altura do liceu Galatassaray, que deu origem ao time de futebol do mesmo nome, dobro à direita na Yeni Carsi Cadessi e vou descendo a ladeira. Cada metro caminhado me leva mais e mais a uma Istambul ainda reservada.
 

Charmosos balcões

Surgem os primeiros prédios com balcões de madeira fechados. É cedo, furgonetas de entrega fazem seu trabalho abastecendo os pequenos bazares e mercearias da rua. Entro nas estreitas, curtas e íngremes travessas secundárias. Prédios de alvenaria amarelos e cremes contrastam com as velhas construções de madeira. Já estou em pleno coração de Çukurcuma, um histórico bairro do distrito de Beyoglu (em turco o g tem uma espécie de “til”, acento que não existe em nossos teclados).

 A pronúncia correta do nome do bairro é “chu-KUR-ju-ma”, como me corrigiu Orhan Pamuk em ligeiro papo que mantive com ele após sua conferência no encerramento do ciclo Fronteiras do Pensamento, dia 6 de dezembro, na Sala São Paulo. 

À espera do "enobrecimento"

É um bairro histórico e popular, no passado dominado por imigrantes gregos, armênios e levantinos mediterrâneos. A área passou por um período de esquecimento e decadência e agora está em processo de transformação. O que explica a existência de uma moderna loja de móveis de design em frente a um ferro-velho, bares boêmios de paredes grafitadas ao lado de prédios residenciais, catadores de lixo rondando galerias de arte, vitrines de antiquários que abafam a gritaria dos meninos que jogam bola na rua e contrastes desse gênero.

Dá para perceber o que os estudiosos urbanos chamam, de forma intelectualizada, de “gentrificação”, neologismo que define o processo de “enobrecimento” de um bairro. Ou, em linguagem mais simples, a substituição de uma população pobre por uma mais abastada. Um Soho.

Çukurcuma é uma contração da expressão “Cuma namazını şu çukurda kılalım”, que lembra que era naquela região de barrancos que o sultão otomano Mehmed II fazia suas orações das sextas-feiras, antes de conquistar Constantinopla (atual Istambul), acabando com o Império Bizantino, em 1453. Ele tinha só 19 anos quando completou a façanha.

Morada do passado

Volto a descer a ladeira do liceu. Paro para fotografar, na esquina da rua Gul Baba, uma casa de madeira escura, de três pisos. Varal de roupa do lado de fora e vasinhos de flores no beiral dos janelões com vidros que se abrem na vertical. Cortinas brancas Um intruso cano de PVC, para conduzir a água da chuva, macula a fachada centenária. A construção é uma das remanescentes da arquitetura original do bairro, muitas delas “reclinadas sobre a calçada como à beira de um colapso” (Pamuk).

Cruzo com um bar em cujas mesinhas da calçada motoristas de táxi jogam gamão no aguardo de clientes. Dois suportes de ferro exibem mais de vinte – contadinhos – diferentes jornais do dia, todos com manchetes em letras garrafais e uma profusão de cores.

O bar faz esquina com a rua por onde corre o filete de água barrenta, meu destino. A estreita via, “popularmente conhecida como ladeira” (Pamuk),  tem o mesmo nome do bairro: Çukurcuma. O coração pulsa de ansiedade. Eu estou a poucos passos da (ao menos na minha imaginação) mística casa onde está sendo instalado o “Masumiyet Müzesi” ou “Museu da Inocência”, o mesmo nome do primeiro livro que Orhan Pamuk escreveu após  ganhar o Nobel.

Na esquina do primeiro beco à direita, fica a casa de banho turco, onde um cartaz diz ser a mais antiga da cidade, algo do qual duvido. Há carros parados nas laterais, mas não há trânsito e assim posso caminhar pelo meio da estreita rua.  

A bandeira do Fenerbarhçe, o grande rival do Galatassaray, pende de uma sacada à esquerda.  Na esquina do terceiro beco, no lado direito, estou numa vendinha.  Compro uma garrafa de água. O rapaz que me atendeu só fala  turco, digo umas duas três vezes o nome de Pamuk, ele deduz o que procuro e mostra um predinho cor de vinho intenso,  na esquina da viela Dalgiç, o segundo beco da rua.  Eu tinha passado direto pela casa do museu e não percebi! Como isso pode acontecer? Afinal, sua pintura novinha a distingue das demais. Mas não há cartaz algum no lado de fora.

Masumiyet Müzesi

É um prédio de frente estreita, fundo extenso, com três pavimentos, contando-se o térreo.  A construção, de 1897, fica próxima do estúdio onde Pamuk trabalha. Ele a comprou há 12 anos, com ajuda de amigos arquitetos a restaurou e ambientou ali uma boa parte de seu romance. Agora, vai abri-la para visitação pública, na forma de um museu. 

O romance se passa nos anos 70, época em que Istambul vivia dias agitados, com muitos atentados políticos atrasando uma sonhada modernização social e cultural nos moldes europeus O livro é narrado por Kemal, filho de um rico empresário, com mais de 30 anos, que abandona a noiva Sibel, inteligente e moderna. Ele tomou a iniciativa por causa de uma obsessiva paixão por uma prima de 18 anos, a bela Fusun (em turco o nome leva um trema no primeiro u), com quem mantém um secreto romance antes do noivado.

Rompido o noivado, ele sofre tremendamente até reencontrá-la, só que Fusun já se casara com um amigo de infância, o que ajudou a limpar a honra da moça de família pobre e tradicional que tinha feito sexo antes do casamento. Com o apoio dos pais dela, Kemal então passa anos visitando a casa deles, pelo prazer de estar junto dela ainda que seja só para ver televisão. Prazer que se prolonga com a posse de objetos retirados sorrateiramente da casa de Fusun: um pente, uma ponta de cigarro com o batom dela, fotos, vasinhos, um brinco e até um fecho da porta do banheiro.  Não vou contar mais nada, recomendo a você ler o livro, pois vale a pena.

De início, segundo o escritor, Kemal não se dá conta de que estava iniciando uma coleção, “mas apenas respondendo a algo espiritual, a uma dor amorosa”. Só mais tarde o personagem pensou em criar o museu juntando todas aquelas peças, fazendo delas o fio condutor de sua história.

Pamuk em SP (foto Greg Salibian)

Isso na ficção, pois na realidade Pamuk começou o romance com a idéia de fazer o museu, o que o obrigou a passar um bom tempo coletando objetos da década de 70 para servirem de inspiração, assim como comprar a casa, relembrar seus tempos de roteirista de cinema, comprar vestimentas da época,  buscar fotos de paisagens e pesquisar como eram os anúncios, rótulos de bebidas e os restaurantes da moda.     

São coisas do cotidiano, das pessoas comuns, ao contrário dos grandes museus que só tratam dos que tiveram poder. De alguma forma, o museu – medidas as devidas proporções – me lembrou o Museu Memória do Bixiga, criado pelo saudoso Armandinho Puglisi a partir de doações de objetos de antigas famílias do bairro. Um museu, como ele gostava de chamar, dos anônimos varridos pela história oficial, parafraseando outro escritor, Jorge Amado.

Ohran Pamuk é o próprio curador do museu que transmutou da ficção para a vida real.  Tudo o que está no livro vai ser exposto. A inauguração deve acontecer provavelmente em abril de 2012, pelo que ele me disse.   

O zelador da casa ?

Passo uns 15 minutos fotografando a casa por fora. Chego até a deitar no chão para buscar os melhores ângulos, apesar do forte odor daquela água barrenta que escorre junto ao fio da calçada. Um gato branco, em cima de um container de lixo, atende acenos, vira-se e dá ambiência para uma foto em dois planos.

 
Em outra, pego o reflexo na janela da casa de roupas estendidas nos prédios

Reflexos do cotidiano

do lado oposto da rua. Naqueles minutos creio ter experimentado a sensação da arte de criação descrita por Pamuk. Deixando de lado a modéstia, me pergunto se eu não teria realizado, com imagens, o que Pamuk diz fazer com palavras: tornar as coisas irrelevantes importantes e as coisas importantes irrelevantes. Ele também afirma que o romance é uma arte visual e, ao contrário do que muitos pensam, para o escritor o mais difícil não é achar primeira palavra, mas definir a primeira imagem de um livro. E, de fato, eu não teria escrito este texto, não tivesse ido retratar o cadinho urbano que aqui descrevo.   

Na conferência, Orhan Pamuk contou que muitos – em especial as mulheres – lhe perguntaram se um dia teve uma paixão como a de Kemal ou, mais diretamente, se não seria ele próprio o personagem narrador? Ele diz que não, mas as pessoas seguem descrentes, tamanha a riqueza dos detalhes e a emoção da narrativa. Não dá para ser só fantasia. Ocorre que a arte do ficcionista, diz, é justamente mentir. Assim, se o leitor insiste, ele deixa barato, não se esforça mais, que continue pensando que ele e Kemal são uma só pessoa. No fundo, confessa,  ele deseja mesmo que o leitor pense dessa forma.

No entanto, se ele próprio deixa a dúvida fica no ar, nós temos todo o direito de ampliá-la. É legítimo, então, perguntar se houve em sua vida uma prima como Fusun? Quem seria?  Ele se cala. ”Ler um romance significa compreender o mundo por uma lógica não cartesiana – ou seja, com a constante e inabalável capacidade de acreditar ao mesmo tempo em idéias contraditórias”. Ele não se sente trapaceiro ou hipócrita por dar abrigo a esses contraditórios.

“A arte de escrever romances é a capacidade de perceber os pensamentos e as sensações dos protagonistas numa paisagem – quer dizer, entre os objetos e imagens que o rodeiam”, diz ele em seu livro mais recente, “O romance ingênuo e o sentimental”. A frase define bem o resto de minha caminhada pelo bairro. Busco onde haveria ainda o autêntico.

Esbarro primeiro numa banquinha de rua de um senhor de boina rústica e barba branca. Comprei dele um cachimbo com bocal de barro e pito de ferro e cobre, “da época dos sultões”. Paguei 25 liras turcas, algo como 25 reais. Ele o embrulhou numa folha de jornal e prendeu com elástico. Hoje me arrependo de não ter comprado outras bugigangas do velho, seriam mais significativas que as mesmices que trouxe dos pontos turísticos de Istambul. Como Kemal (Pamuk ?), também coleciono objetos e o cachimbo está entre os que me são mais afetivos. 

Passeio pela história

Descendo e subindo  ladeiras, caminho na direção ao Bósforo, onde já se pode ouvir as sirenes das balsas. Não vou, contudo, até  Cihangir,bairro boêmio da moda,  às margens do Estreito. Fico em Firuzaga, onde encontro outra pequena mesquita, a Haci Piri Cami, do século XVI, na parte alta de uma praça. Na parte baixa funcionam estabelecimentos comerciais, dando a impressão de que eles e o templo são uma construção só.  

O kebab não tem pressa

Um dos negócios é um restaurante de kebabs (pedaços de carne enrolados em finas fatias de pão). Garçons conversam tranquilamente sentados no lado de fora. A poucos metros, as janelas de um prédio desbotado se destacam pelos desenhos de gatos dos vidros – aliás esses bichinhos são numerosos em Istambul. Vendedores de utensílios usados puxam seus carrinhos de madeira com pinturas de flores. Nem oferecendo dinheiro consegui tirar a foto de um deles.   

Tomo um çay (chá) e descanso numa pequena meyhane (equivalente a um botequim). Volto a caminhar. Estou perdido. Subo uma ladeira onde um jovem me oferece para fumar um narghilé.  Recuso. Uns 50 metros depois, chego a uma movimentada rua de pedestres, com um bondinho vermelho indo e vindo. Voltei à realidade turística da Itiskal Cadessi, mas Ohran Pamuk continua por perto com seus livros em destaque nas prateleiras de madeira escura da minúscula na livraria Robinson Crusoe.

“Volte a Istambul”, convidou o escritor após autografar meu exemplar de “O Museu da Inocência”. Se eu voltar, penso em escolher outra estação do ano, para experimentar a sensação de ver a casa-museu “banhada de pérola peculiar dos dias de cerração”.

                                                      Júlio Moreno    (texto e fotos de Istambul)